terça-feira, 3 de março de 2015

UNIDADE I - BOA FÉ OBJETIVA

4. BOA FÉ OBJETIVA

4.1. Boa Fé Subjetiva e Boa Fé Objetiva

A boa fé subjetiva é aquela que está relacionada com a intenção da pessoa, que ignora um vício relacionado com uma pessoa, um bem ou um determinado negócio (TARTUCE, 2014). Por exemplo, no Direito das Coisas, um dos requisitos para certas modalidades de usucapião é a boa fé subjetiva, que pode reduzir o prazo para a aquisição da propriedade se o usucapiente desconhecia o vício que existia sobre sua posse.

Para ilustrar, pense na situação em que alguém comprou um imóvel através de escritura pública, tudo a indicar que quem lhe vendeu foi o verdadeiro dono. No entanto, posteriormente descobre-se que houve uma fraude e o verdadeiro proprietário pede a anulação do registro da escritura de compra e venda. Em situações como esta, dependendo do tempo que levou o proprietário para impugnar o novo título, o adquirente pode alegar a usucapião em defesa (art. 1.242, p. único), ao fundamento de que sua posse foi adquirida com boa fé. Mas atenção: boa fé subjetiva, porque o título que ele tinha (escritura registrada em cartório) lhe trouxe a crença de que ele realmente tinha adquirido a propriedade do imóvel.

De forma semelhante, é comum, no direito das famílias, pedidos de anulação do casamento por erro essencial quanto à pessoa (art. 1.556). São frequentes os casos em que, após a celebração do casamento, um dos cônjuges faz voto de castidade. O pior é quando o “cônjuge inocente” descobre que o sexo biológico do outro não confere com o que foi imaginado.

Enfim, tanto no primeiro como no segundo exemplo, a boa fé é subjetiva, pois ela está relacionada com a intenção. O agente desconhece uma situação de fato. Esta boa fé, portanto, é psicológica.

No entanto, o princípio da boa fé, em matéria obrigacional (contratual), não se refere à intenção, ao conhecimento ou ao desconhecimento de uma situação, mas sim à conduta ou a um padrão de comportamento das partes. A objetivação da boa fé ocorreu com o jusnaturalismo e essa nova faceta da boa fé constou de expressivas codificações modernas, como o BGB (1900), Cód. Italiano de 1942 e Código Português de 1966.

Neste sentido, afirma Caio Mario da Silva Pereira:

A boa-fé referida no art. 422 do Código é a boa-fé objetiva, que é característica das relações obrigacionais. Ela não se qualifica por um estado de consciência do agente de estar se comportando de acordo com o Direito, como ocorre com a boa-fé subjetiva. A boa-fé objetiva não diz respeito ao estado mental subjetivo do agente, mas sim ao seu comportamento em determinada relação jurídica de cooperação. O seu conteúdo consiste em um padrão de conduta, variando as suas exigências de acordo com o tipo de relação existente entre as partes. (2014, Vitalfile Book)

Portanto, o princípio da boa fé, no campo do direito das obrigações, está diretamente relacionado com a ética (eticidade). Para saber se o contratante agiu de boa fé, não se faz uma análise piscológica para saber o que se passava em sua mente. Vai muito além. Basta observar se a parte agiu eticamente, com um padrão de conduta leal e com respeito às legítimas expectativas do outro contratante.

4.2. Conceito de Boa Fé Objetiva e sua Aplicação nos Contratos

A boa fé objetiva pode ser conceituada como “a exigência de conduta leal dos contratantes (...)

Segundo Flávio Tartuce, a boa fé objetiva inclui a boa intenção e o comportamento padrão, pautado na probidade e na lealdade. Para este autor, boa fé = boa fé subjetiva + probidade, pois “na grande maioria das vezes, aquele que age bem o faz movido por uma boa intenção (2014, p. 97)”

Este padrão de comportamento pautado pela probidade e lealdade deve ser observado em todas as fases do contrato. Neste sentido, o artigo 422 do Código Civil, mesmo que de forma incompleta, impõe essa exigência:

Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

No entanto, o art. 422 do Código Civil, por omissão, não impõe expressamente a necessidade de observância da boa fé na fase pré-contratual  e na pós contratual, abrindo margem para dúvidas a respeito da aplicação deste princípio em tais fases.

É bom que se esclareça que todo contrato apresenta três fases: A fase de negociação ou tratativas, também conhecida como fase de “puntuação”, a fase de cumprimento ou execução, referida pelo art. 422, e, por fim, a fase pós contratual.

Como visto, o art. 422 não se refere ao momento pré-contratual, mas, a despeito do silencio da lei, a boa fé se aplica a todas as fases contratuais, inclusive na fase inicial de tratativas e na fase pós contratual.

Este entendimento está consagrado tanto no âmbito doutrinário, diante da aprovação de Enunciados normativos do CJF – vejamo-los:

25 - Art. 422: o art. 422 do Código Civil não inviabiliza a aplicação pelo julgador princípio da boa-fé nas fases pré-contratual e pós -contratual.

170 (III Jornada) – Art. 422: A boa-fé objetiva deve ser observada pelas partes na fase de negociações preliminares e após a execução do contrato, quando tal exigência decorrer da natureza do contrato.

Para que esta ideia fique bem claro, convém apresentar alguns exemplos de aplicação da boa fé em cada uma dessas fases. É bom ficar atento a um detalhe: em todos os casos narrados, existe uma coisa em comum: A QUEBRA DA CONFIANÇA, seja na fase pré, na contratual, ou na pós-contratual.

 A jurisprudência é farta em exemplos, vejamos alguns deles:

4.2.1. Boa Fé Objetiva na Fase Pré-Contratual (Fase Preliminar)

a)       O Caso dos Tomates no Rio Grande do Sul

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul julgou diversos casos que envolveu a CICA, uma sociedade empresária que vende molhos e massas de tomate. O caso pode ser descrito basicamente da seguinte forma:

Durante dez anos, empregados de uma fabricante de extrato de tomate distribuíram, gratuitamente, sementes de tomate entre agricultores de uma certa região. A cada ano, os empregados da fabricante procuravam os agricultores, na época da colheita, para adquirir a safra produzida. No ano de 2009, a fabricante distribuiu as sementes, como sempre fazia, mas não retornou para adquirir a safra. Procurada pelos agricultores, a fabricante recusou-se a efetuar a compra, mas o Tribunal Gaúcho entendeu que havia responsabilidade pré-contratual da fabricante.

Vejamos a ementa de um dos inúmeros casos julgados pelo TJRS:

Ementa: CONTRATO. TEORIA DA APARENCIA. INADIMPLEMENTO. O TRATO, CONTIDO NA INTENCAO, CONFIGURA CONTRATO, PORQUANTO OS PRODUTORES, NOS ANOS ANTERIORES, PLANTARAM PARA A CICA, E NAO TINHAM POR QUE PLANTAR, SEM A GARANTIA DA COMPRA. (RESUMO) (Embargos Infringentes Nº 591083357, 

b)       Compra e Venda do Veículo. Publicidade Enganosa.

Outro bom exemplo de aplicação da boa fé, na fase pré-contratual, encontra-se no julgado abaixo, que também foi realizado pelo TJRS:

Ementa: REPARAÇÃO DE DANOS MATERIAIS E MORAIS. RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL. PRINCÍPIO DA BOA FÉ OBJETIVA DOS CONTRATOS. Negociações preliminares a induzir os autores a deslocarem-se até o Rio de Janeiro para a aquisição de veículo ¿semi-novo¿ da ré, na companhia de seu filho  71000531376

c)       Compra e Venda de Imóveis. Ocultação de Informações Pessoais (Protestos)

Agora um exemplo do Tribunal de Justiça de São Paulo:

Ementa: Contrato. Rescisão. Negócio interrompido pela certificação de que os compromissários-vendedores apresentavam diversos protestos de títulos. Regular notificação para a dissolução da avença. Apuração de falsidade de documento. Má-fé dos requeridos demonstrada. Retenção do sinal a título de indenização por perdas e danos. Inadmissibilidade. Violação do princípio da boa-fé objetiva, inclusive na fase pré-contratual. Sentença de procedência mantida. Recurso dos réus improvido. (TJSP, Apelação Cível n. 412.119.4/7, Acórdão n. 2652529)

d)       Concessão Comercial. Quebra da Boa Fé na Fase Preliminar

Por fim, é possível mencionar um caso julgado pelo STJ, em 2013:

3. A responsabilidade pré-contratual não decorre do fato de a tratativa ter sido rompida e o contrato não ter sido concluído, mas do fato de uma das partes ter gerado à outra, além da expectativa legítima de que o contrato seria concluído, efetivo prejuízo material.
4. As instâncias de origem, soberanas na análise das circunstâncias fáticas da causa, reconheceram que houve o consentimento prévio mútuo, a afronta à boa-fé objetiva com o rompimento ilegítimo das tratativas, o prejuízo e a relação de causalidade entre a ruptura das tratativas e o dano sofrido. A desconstituição do acórdão, como pretendido pela recorrente, ensejaria incursão no acervo fático da causa, o que, como consabido, é vedado nesta instância especial (Súmula nº 7/STJ). 5. Recurso especial não provido. (STJ, REsp 1.051.065)

e)       Advertência (Fase Preliminar e Contrato Preliminar)

Antes de examinar os exemplos de violação da boa fé na fase contratual, é importante explicar uma distinção que pode trazer confusões para quem inicia o estudo da matéria.

Uma coisa é a fase pré-contratual, também chamada fase de tratativas, de negociações, ou ainda, fase de negociações, em que os contratantes estão fazendo análise de propostas, discutindo cláusulas etc. Outra, completamente diferente, é o contrato preliminar ou pré-contrato. O que você conhece como promessa de compra e venda é um contrato preliminar, não uma fase de tratativa.

É importante que se saiba, mesmo antes do estudo do tema, que o contrato preliminar é uma espécie de contrato, que se distingue em relação aos demais porque o seu objeto é a celebração de um contrato futuro. É simples: contrato preliminar é aquele que cujo objeto é a celebração de um contrato futuro. Note que ele cria uma obrigação de fazer, consistente na assinatura de um futuro contrato.

É muito comum a promessa de compra e venda, mas é possível a celebração de um contrato preliminar para a realização de uma doação ou uma locação, por exemplo. (promessa de doação ou promessa de locação, por que não?)

Por ora, ficam apenas as distinções conceituais, pois o contrato preliminar será estudado em momento oportuno.

4.2.2.  Quebra da Boa Fé Objetiva na Fase Contratual  

Como visto, a boa fé objetiva é norma de comportamento que impõe deveres de lealdade e confiança aos contratantes. São frequentes os exemplos de quebra da boa fé na fase de execução/cumprimento do contrato, como retratam os casos abaixo:

a)       Caso Zeca Pagodinho

O mais citado e conhecido exemplo de quebra da boa fé objetiva na fase contratual é o caso do cantor Zeca Pagodinho. A notícia divulgada sobre o caso foi a de que o cantor tinha feito um contrato com a Schincariol para divulgar a marca da cerveja que estava em busca de conquista um espaço no mercado. Como o produto ainda era pouco conhecido, o bordão da publicidade era um apelo na qual diversos personagens famosos, como o Zeca e o Luciano Huck, entoavam um coro dizendo “experimenta”.

No entanto, durante a fase de cumprimento ou execução deste contrato publicitário, o cantor Zeca pagodinho firmou outro contrato semelhante com a AMBEV, para divulgar a marca da cerveja BRAHMA. Assim, ao mesmo tempo em que ele se dirigia ao publico para promover a marca NOVA SCHIN, o pagodeiro participou de uma publicidade televisiva marcada por um bordão do tipo: “fui provar outro sabor, eu sei, mas não largo meu amor, voltei”. Ou seja, como se a relação do cantor com a Schin fosse um “amor de verão”.

Diante disso, a Schin propôs a ação de rescisão contratual, cumulada com indenização e perdas e danos, que tramitou no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

O caso pode ser acompanhado no próprio site do TJSP (Ap. Cível 7.155.293-9):

Ementa: INDENIZAÇÃO - Danos morais e materiais - Contrato de utilização da imagem e voz de cantor em campanha publicitária de cerveja - Quebra do contrato, com o debande do artista para empresa concorrente - Violação do contrato, com efetivação de danos materiais e morais ~ Provimento parcial a ambos os recursos - Danos materiais a serem apurados em liquidação de sentença por arbitramento, proporcionalmente ao efetivo cumprimento do contrato de prestação de serviços - Dano moral, considerando a condição das partes e o valor do contrato, na quantia de R$ 420.000,0

4.2.3. Boa Fé Objetiva na Fase Pós Contratual

a)       Concorrência Desleal do Alienante no Contrato de Trespasse.

Um excelente exemplo para a visualização da quebra da boa fé na fase posterior ao cumprimento do contrato é o do alienante que, no contrato de trespasse, se reestabelece no mesmo ramo de atividade do adquirente do estabelecimento, fazendo concorrência desleal.

O exemplo não é bom apenas porque escancara uma situação de quebra da lealdade e do respeito à confiança, mas sobretudo porque é um exemplo interdisciplinar.

Assim, como visto no direito de empresa, trespasse é o contrato de alienação do estabelecimento empresarial, isto é, aquele contrato que tem por objeto o complexo de bens organizado, para o exercício da empresa, por empresário, ou sociedade empresária (art. 1.142, do CC)

Como se sabe, sendo o contrato omisso sobre a possibilidade do alienante se reestabelecer no mesmo ramo de atividade (cláusula de reestabelecimento), este não poderá fazer concorrência ao adquirente, pois do contrário haveria quebra da confiança ou da legítima expectativa do comprador, no sentido de se aproveitar da clientela angariada pelo vendedor, pelo menos nos primeiros anos (5, na mínimo – 1.147) de exploração do estabelecimento adquirido.

É patente, portanto, nesta situação, a quebra do padrão de conduta pautado na lealdade e na confiança.

b)       Exclusão do nome do Devedor do Cadastro de Inadimplentes

Flávio Tartuce (2014) também aponta como exemplo de quebra da boa fé na fase “pós” o caso do credor que, após o pagamento do débito apontado junto aos órgãos de restrição ao crédito, não promove a exclusão do nome do devedor do banco restritivo de dados.

Para ilustrar, um precedente do TJRS (Recurso Inominado n. 71000614792):

Ementa: INSCRIÇÃO NO SPC. DÍVIDA PAGA POSTERIORMENTE. DEVER DO CREDOR DE PROVIDENCIAR NA BAIXA DA INSCRIÇÃO. DEVER DE PROTEÇÃO DOS INTERESSES DO OUTRO CONTRA TANTE, DERIVADO DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ CONTRATUAL, QUE PERDURA INCLUSIVE APÓS A EXECUÇÃO DO CONTRATO (RESPONSABILI DADE  71000614792

No exemplo acima, o nome do devedor permaneceu inscrito indevidamente por cerca de três meses, o que gerou dano extrapatrimonail. A Turma Recursal do TJRS manteve a sentença que fixou o valor da compensação por danos morais em 4 vezes o valor do débito.

E se um atraso de três meses já é suficiente para caracterizar dano moral, o que dizer de um atraso de 5 dias? O STJ, em recente julgado (informativo 501), que o dever de promover a exclusão é de apenas 5 dias!!

Vejamos a ementa do julgado:

Cabe às entidades credoras que fazem uso dos serviços de cadastro de proteção ao crédito mantê-los atualizados, de sorte que uma vez recebido o pagamento da dívida, devem providenciar o cancelamento do registro negativo do devedor. Precedentes. Quitada a dívida pelo devedor, a exclusão do seu nome deverá ser requerida pelo credor no prazo de 05 dias, contados da data em que houver o pagamento efetivo, sendo certo que as quitações realizadas mediante cheque, boleto bancário, transferência interbancária ou outro meio sujeito a confirmação, dependerão do efetivo ingresso do numerário na esfera de disponibilidade do credor. Nada impede que as partes, atentas às peculiaridades de cada caso, estipulem prazo diverso do ora estabelecido, desde que não se configure uma prorrogação abusiva desse termo pelo fornecedor em detrimento do consumidor, sobretudo em se tratando de contratos de adesão. A inércia do credor em promover a atualização dos dados cadastrais, apontando o pagamento, e consequentemente, o cancelamento do registro indevido, gera o dever de indenizar, independentemente da prova do abalo sofrido pelo autor, sob forma de dano presumido. (REsp 1.149.998-RS)

Portanto, é obrigação do credor a solicitação da baixa da restrição nos órgãos restritivos de crédito (SPC/SERASA). Mas atenção! Se o devedor teve um título protestado no tabelionato de protestos (cheque, duplicata ou qualquer outro documento de dívida), a obrigação da baixa já não é mais do credor.

São duas situações distintas: os cadastros restritivos (SPC/SERASA) e o cartório de protestos. Na primeiro caso, cabe ao credor o dever de solicitar a exclusão. Já no segundo (protestos), quem deve se dirigir ao cartório é o próprio devedor que, para a realização da baixa, deve apresentar o próprio título protestado ou uma carta de anuência assinada pelo credor, com firma reconhecida.

No caso do protesto, a jurisprudência do TJMG e do STJ é exatamente essa, vejamos:

A Segunda Seção do STJ, em julgamento pelo regime do art. 543-C do CPC, decidiu que "no regime próprio da Lei n. 9.492/1997, legitimamente protestado o título de crédito ou outro documento de dívida, salvo inequívoca pactuação em sentido contrário, incumbe ao devedor, após a quitação da dívida, providenciar o cancelamento do protesto". 2. O recurso especial devolve matéria que não foi objeto de debate pela Corte de origem. Ausente o prequestionamento, exigido inclusive para as questões de ordem pública, caracterizado está o óbice das Súmulas 282 e 356 do STF. (AgRg no REsp 1.143.023/MG)

c)       Exemplos citados por Antônio Junqueira de Azevedo[1]

Por fim, para concluir com mais alguns exemplos de quebra da boa fé na fase pós-contratual, transcrevo os casos relatados por Antônio Junqueira de Azevedo em artigo apresentado ao Conselho de Justiça Federal (os exemplos são na verdade de Antonio Menezes de Cordeiro):

“1.°) O proprietário de um imóvel vendeu-o e o comprador que o adquiriu, por ter o terreno uma bela vista sobre um vale muito grande, constrói ali uma ótima residência, que valia seis vezes o preço do solo. A verdade é que o vendedor gabou a vista e, então, fez a transferência do imóvel para o comprador – negócio acabado. Depois, o ex-proprietário, o vendedor, que sabia da proibição pela prefeitura municipal de construção elevada no imóvel em frente, adquiriu assim mesmo esse imóvel e, em seguida, conseguiu na prefeitura a alteração do plano da cidade, para que fosse permitido fazer a construção, quer dizer, ele construiu um prédio que tapava a vista do próprio terreno que havia vendido a outro – esse ato não era literalmente ato ilícito. Ele, primeiramente, cumpriu a sua parte, depois comprou o outro terreno, foi à prefeitura, mudou o plano e, aí, construiu. A única solução para o caso é aplicar a regra da boa-fé. Ele faltou com a lealdade no contrato que já estava acabado. Perturbou a satisfação do comprador resultante do contrato já executado. É, portanto, falta de boa-fé ‘post pactum finitum’.
2. °) Uma dona de boutique encomendou a uma confecção de roupas 120 casacos de pele. A confecção fez os casacos, vendeu-os e entregou-os para a dona da boutique. Liquidado esse contrato, a mesma confecção fez mais 120 casacos de pele, idênticos, e vendeu-os para a dona da boutique vizinha. Há também, evidentemente, deslealdade e falta de boa-fé ‘post pactum finitum’.
3. °) Um indivíduo queria montar um hotel e procurou e conseguiu o melhor e mais barato carpete para colocar no seu empreendimento. Conseguiu uma fornecedora que disse ter o melhor preço mas que não fazia a colocação. Ele pediu, então, à vendedora a informação de quem poderia colocar o carpete. A firma vendedora entregou a mercadoria e indicou o nome de uma pessoa, que já tinha alguma prática na colocação de carpete, mas não disse ao colocador que o carpete que estava fornecendo para esse empresário era de um tipo novo, diferente. O colocador do carpete pôs uma cola inadequada e, semanas depois, todo o carpete estava estragado. A vendedora dizia: cumpri a minha parte no contrato, entreguei, recebi o preço, o carpete era esse, fiz favor indicando um colocador. Segundo a regra da boa-fé, porém, ela não agiu com diligência, porque, no mínimo, deveria ter alertado o propósito do novo tipo de carpete – uma espécie de dever de informar e de cuidar, depois de o contrato ter terminado. Há responsabilidade pós-contratual”

4.3. Funções da Boa Fé Objetiva

Segundo a lição de Fernando de Noronha, a boa fé se apresenta com as funções interpretativa, integrativa e de controle.

“A primeira serve para aclarar o sentido das estipulações contratuais; a segunda, para explicitar os deveres de comportamento do credor e do devedor, ainda que não previstos no contrato ou na norma; e a terceira, para impedir o exercício abusivo de direitos subjetivos e potestativos nas relações obrigacionais.” (NORONHA[2] apud CHAVES; ROSENVALD, 2011, p. 167)

4.3.1. Função Interpretativa (Art. 113)

Como dito acima, a boa fé serve para aclarar o sentido e alcance das estipulações contratuais. Nesse caso, “a boa fé é uma regra fundamental de interpretação de toda e qualquer atividade negocial” e também um “parâmetro objetivo para orientar o julgador” (CHAVES; ROSENVALD, 2011, p. 443) na decisão do caso concreto.

Em suma, a boa fé, enquanto parâmetro de interpretação, afasta o julgador de uma interpretação literal do texto contratual (in claris cessat interpretatio), para se aproximar de uma hermenêutica mais consentânea com o objetivo comum pretendido pelas partes.

É como bem disseram os juristas baianos, Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona (2012): a boa fé é um “referencial hermanêutico” seguro para o aplicador do direito. De fato, a função interpretativa da boa fé tem íntima relação com o art. 5º da LINDB (Art. 5o  Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum)

Para entender melhor a função interpretativa, é interessante a análise da Súmula 402 do STJ, segundo a qual:

- Súmula 402: “O contrato de seguro por danos pessoais compreende danos morais, salvo cláusula expressa de exclusão”.

O enunciado sumular sedimentou a orientação já firmada pela jurisprudência, podendo-se citar, por todos, o seguinte acórdão:

“Prevista a indenização por dano pessoal a terceiros em seguro contratado com a ré, neste inclui-se o dano moral e a consequente obrigação, desde que não avençada cláusula de exclusão dessa parcela.” (REsp 727.081-MG)

A relação da súmula com a função interpretativa da boa fé está na análise do sentido e alcance da cobertura por danos pessoais.

No seguro automotivo de responsabilidade civil, o segurado pode contratar algumas coberturas para se precaver contra danos provocados a terceiros. Dentre os possíveis danos, incluem-se o material, como avarias causadas no veículo do terceiro e eventuais lucros cessantes. E é claro que, num mesmo acidente, podem ocorrer danos corporais, como se dá num acidente que envolve um motociclista.

O problema é que algumas apólices contemplavam uma cobertura denominada de danos pessoais a terceiros. Qual seria, então, o risco abrangido por esta cobertura? Danos corporais, lucros cessantes, danos morais? Esta foi a tarefa interpretativa enfrentada pelos tribunais, sendo que prevaleceu a orientação mais consentânea com a boa fé e os fins sociais da norma, conforme teor da Súmula 402.

4.3.2. Função de Controle (Art. 187)

Relembrando do que foi acima mencionado, a função de controle serve para impedir o exercício abusivo de direito nas relações obrigacionais. O abuso de direito está previsto no art. 187 do Código Civil como espécie de ato ilícito que, a despeito de ser formalmente lícito, é ilícito no conteúdo.

Ou seja: o abuso de direito é aquele que é lícito na forma, mas ilícito no conteúdo.

Pensemos no simples exemplo de um senhor de 70 anos que tem direito ao atendimento preferencial imediato, nos termos do art. 3º, inc. I da Lei 10.741/03 (Estatuto do Idoso), mas que usa a fila do banco para realizar inúmeras transações de um malote de uma empresa para o qual trabalha. Esse é o exemplo do Office old, que retrata a situação do exercício de um direito subjetivo de maneira abusiva, pois a finalidade do direito é a de garantir rapidez no atendimento de uma pessoa que, pela idade, necessita de cuidados especiais.

Nesse exemplo, há desvio de finalidade e por isso o conteúdo do direito é ilegítimo.

Outro bom exemplo para se começar a pensar na função de controle da boa fé é o do credor de uma dívida qualquer. O titular de um crédito pode exercer os atos necessários à cobrança dos valores devidos, mas sem expor o devedor ao ridículo, pois o sistema tutela o crédito, mas protege os direitos de personalidade do devedor, como a honra objetiva.

Pode-se dizer, assim, que a cobrança de uma dívida é um exercício regular de um direito (art. 188, I) do CC, mas o exercício do direito não pode realizado para ofender o devedor. Neste sentido, dispõe o artigo 42 do CDC:

 Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.

Visto o que se pode entender pelo abuso de direito, e considerando que a função de controle da boa fé se destina a conter esse abuso, deve-se perguntar como a boa fé cumpre esse objetivo. Assim, para a realização desse mister, a boa fé conta com certos mecanismos e categorias jurídicas que foram desenvolvidos pela doutrina e são aplicados pela jurisprudência.

Em termos bem claros: a boa fé, na sua função de controle, exerce uma limitação para conter o exercício abusivo de direito. Para tanto, a boa fé tem algumas ferramentas que a auxiliam nesta árdua tarefa, a saber: a teoria do adimplemento substancial e a teoria dos atos próprios, que por sua vez inclui a vedação ao comportamento contraditório, surrectio, suprressio,  tu quoque e o duty to mitigate to the own lost.

O que foi dito pode ser confirmado em um precedente do STJ que resumiu muito bem a situação:

“[...] O princípio da boa-fé objetiva exerce três funções: (i) a de regra de interpretação; (ii) a de fonte de direitos e de deveres jurídicos; e (iii) a de limite ao exercício de direitos subjetivos. Pertencem a este terceiro grupo a teoria do adimplemento substancial das obrigações e a teoria dos atos próprios ('tu quoque'; vedação ao comportamento contraditório; "surrectio'; 'suppressio') [...](REsp 953.389-SP)
.
Sendo assim, serão examinados nos próximos tópicos cada um desses mecanismos auxiliares da função de controle da boa fé.

4.3.2.1. Mecanismos Auxiliares da Função de Controle da Boa Fé Objetiva

a)       Teoria do Adimplemento Substancial

É cediço que grande parte dos veículos que circulam pelo país são financiados pelos bancos, através da alienação fiduciária em garantia. Em grande parte dos casos, o devedor assume longas prestações (sessenta parcelas) para realizar a necessidade de se ter um automóvel.

Em contratos dessa natureza, como o veículo é a própria garantia do cumprimento da obrigação, o banco/credor pode propor ação de busca e apreensão, a fim de reaver a posse do veículo e promover a venda do bem a terceiros para o pagamento do saldo devido, conforme prevê o art. 2º do Dec. 911/69, que foi alterada recentemente, diga-se de passagem, pela Lei 13.043/2014.

O direito ao crédito, portanto, é formalmente lícito, sendo que o credor pode optar pela busca e apreensão, com amparo no dispositivo legal retrocitado, ou optar pela cobrança do saldo devedor através de uma ação de cobrança ou execução. Nesse último caso, a posse do veículo continua com o devedor, o qual terá que pagar as parcelas cobradas pelo banco.

É interessante notar que, a princípio, o banco tem duas opções. Ou promove a busca e apreensão ou executa. No entanto, quando o devedor realiza um considerável número de pagamentos das parcelas, seria desleal reconhecer a possibilidade do banco pedir a busca e apreensão, pois isso representaria um sacrifício extremo e geraria gastos excessivos.

Neste sentido, o banco que, após o inadimplemento da 46ª parcela de um total de 48, decide promover a busca e apreensão está incorrendo no exercício desleal de direitos, que é coibido pela teoria do adimplemento substancial.

Assim, o devedor pode invocar a função de controle da boa fé, através da teoria do adimplemento substancial, para extinguir sem resolução do mérito a ação de busca e apreensão quando o pagamento das prestações tiver sido executado de modo expressivo e considerável.

A jurisprudência confirma a que foi dito como se infere do precedente abaixo citado:

ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. Busca e apreensão. Deferimento liminar. Adimplemento substancial. Não viola a lei a decisão que indefere o pedido liminar de busca e apreensão considerando o pequeno valor da dívida em relação ao valor do bem e o fato de que este é essencial à atividade da devedora. (REsp 469.577-SC)

Em suma, “repugna-se [...] a conduta de quem exercita determinado direito apenas para prejudicar a parte contrária, de modo que o cumprimento da obrigação não acarrete qualquer benefício àquela.”

b)       A Proibição do Comportamento Contraditório

O comportamento prolongado de um contratante pode gerar legítima expectativa na outra parte sobre a estabilidade daquela conduta, a ponto de criar obrigação para aquele que se comportou de uma certa maneira, no sentido de continuar se portando de tal modo para não surpreender indevidamente o outro.

Neste contexto, a “teoria dos atos próprios”, ou a proibição de venire contra factum proprium [...] na lição de Ruy Rosado de Aguiar Júnior[3] “protege uma parte contra aquela que pretende exercer uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente. Depois de criar uma certa expectativa, em razão de conduta seguramente indicativa de determinado comportamento futuro, há quebra dos princípios de lealdade e confiança se vier a ser praticado ato contrário ao previsto, com surpresa e prejuízo à outra parte” (JÚNIOR apud GONÇALVES, 2012, p. 60)

O exemplo notável de aplicação da proibição do comportamento contraditório está na possibilidade de condenação por danos morais do credor de um cheque que violou o acordo feito com o emitente e realizou a apresentação antecipada do mesmo:

SÚMULA 370 DO STJ
Caracteriza dano moral a apresentação antecipada do cheque predatado.

Isso acontece porque, embora o cheque seja um título que representa ordem de pagamento à vista, nos termos do art. 32, da Lei 7.357/85, a apresentação antecipada implica quebra de acordo feito entre as partes, de modo que o emitente é surpreendido pelo comportamento contraditório do portador do título.


Outros bons exemplos podem ser colhidos da jurisprudência:

“[...] A MULHER QUE DEIXA DE ASSINAR O CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA JUNTAMENTE COM O MARIDO, MAS DEPOIS DISSO, EM JUIZO, EXPRESSAMENTE ADMITE A EXISTENCIA E VALIDADE DO CONTRATO, FUNDAMENTO PARA A DENUNCIAÇÃO DE OUTRA LIDE, E NADA IMPUGNA CONTRA A EXECUÇÃO DO CONTRATO DURANTE MAIS DE 17 ANOS, TEMPO EM QUE OS PROMISSARIOS COMPRADORES EXERCERAM PACIFICAMENTE A POSSE SOBRE O IMOVEL, NÃO PODE DEPOIS SE OPOR AO PEDIDO DE FORNECIMENTO DE ESCRITURA DEFINITIVA. DOUTRINA DOS ATOS PROPRIOS. ART. 132 DO CC. (REsp 95.539-SP)
 
“ [...] Uma das funções da boa-fé objetiva é impedir que o contratante adote cJomportamento que contrarie o conteúdo de manifestação anterior, cuja seriedade o outro pactuante confiou. 3. Celebrado contrato de locação de imóvel objeto de usufruto, fere a boa-fé objetiva a atitude da locatária que, após exercer a posse direta do imóvel por mais de dois anos, alega que o locador, por ser o nú-proprietário do bem, não detém legitimidade para promover a execução dos aluguéis não adimplidos.” (AgRg no AgRg no Ag 610.607/MG)

Por fim, ressalta-se a aprovação de um enunciado doutrinário, nas jornadas do CJF, sobre a vedação do comportamento contraditório, conforme se segue:

362 – Art. 422. A vedação do comportamento contraditório (venire contra factum proprium) funda-se na proteção da confiança, tal como se extrai dos arts. 187 e 422 do Código Civil.

c)       Supressio / Surrectio

É a supressão do direito pelo seu não exercício. “A abstenção na realização do negócio cria na contraparte a representação de que esse direito não mais será atuado” A chave da supressio está na tutela da confiança. As expectativas são projetadas a partir da injustificada inércia.

É a supressão, por renúncia tácita, de um direito ou de uma posição jurídica, pelo seu não exercício com o passar dos tempos (TARTUCE, 2011, p. 132)

Ou ainda, é a situação do direito que deixou de ser exercitado em determinada circunstância e não mais possa sê-lo por, de outra forma, contrariar a boa fé. (CHAVES; ROSENVALD, 2011, p. 191)

E novamente com Ruy Rosado de Aguiar Júnior, a supressio (Verwirkung), está presente na situação em que “um direito não exercido durante determinado lapso de tempo não poderá mais sê-lo, por contrariar a boa fé.” (JÚNIOR apud GONÇALVES, 2012, p. 61)

Há um nítido exemplo da supressio no artigo 330 do Código Civil: “O pagamento reiteradamente feito em outro local faz presumir renúncia do credor relativamente ao previsto no contrato”

Destarte, colhe-se do banco de jurisprudência do TJMG outro exemplo elucidativo de aplicação do instituto:

Ementa: DIREITO CIVIL. LOCAÇÃO RESIDENCIAL. SITUAÇÃO JURÍDICA CONTINUADA AO ARREPIO DO CONTRATO. ALUGUEL. CLÁUSULA DE PREÇO. FENÔMENO DA SURRECTIO A GARANTIR SEJA MANTIDO A AJUSTE TACITAMENTE CONVENCIONADO. - A situação criada ao arrepio de cláusula contratual livremente convencionada - pela qual a locadora aceita, por certo lapso de tempo, aluguel a preço inferior àquele expressamente ajustado -, cria, a luz do Direito Civil moderno, novo direito subjetivo, a estabilizar situação de fato já consolidada, em prestígio ao princípio da boa-fé contratual. TJMG 1632995-86.2003.8.13.0024

Também é possível extrair outro importante exemplo prático da supressio na jurisprudência do STJ, como se deflui do julgado abaixo:

“[...] Trata-se de situação na qual, mais do que simples renúncia do direito à correção monetária, a recorrente abdicou do reajuste para evitar a majoração da parcela mensal paga pela recorrida, assegurando, como isso, a manutenção do contrato. Portanto, não se cuidou propriamente de liberalidade da recorrente, mas de uma medida que teve como contrapartida a preservação do vínculo contratual por 06 anos. Diante desse panorama, o princípio da boa-fé objetiva torna inviável a pretensão da recorrente, de exigir retroativamente valores a título de correção monetária, que vinha regularmente dispensado, frustrando uma expectativa legítima, construída e mantida ao longo de toda a relação contratual [...]” (REsp 1.202.514/RS)

Ainda da ementa deste julgado, constam importantes conceitos sobre a boa fé e os institutos a ela relacionados:

“[...] 3. Nada impede o beneficiário de abrir mão da correção monetária como forma de persuadir a parte contrária a manter o vínculo contratual. Dada a natureza disponível desse direito, sua supressão pode perfeitamente ser aceita a qualquer tempo pelo titular. 4. O princípio da boa-fé objetiva exercer três funções: (i) instrumento hermenêutico; (ii) fonte de direitos e deveres jurídicos; e (iii) limite ao exercício de direitos subjetivos. A essa última função aplica-se a teoria do adimplemento substancial das obrigações e a teoria dos atos próprios, como meio de rever a amplitude e o alcance dos deveres contratuais, daí derivando os seguintes institutos: tu quoque, venire contra facutm proprium, surrectio e supressio. 5. A supressio indica a possibilidade de redução do conteúdo obrigacional pela inércia qualificada de uma das partes, ao longo da execução do contrato, em exercer direito ou faculdade, criando para a outra a legítima expectativa de ter havido a renúncia àquela prerrogativa.”

Já a surrectio (Erwirkung) é a “outra face” ou o “outro lado” da moeda (GAGLIANO; FILHO, 2012). Se, por um lado, o comportamento reiterado pode suprimir o direito de uma parte, faz surgir, de outro, um direito ao outro contratante.

Neste sentido, a surrectio é uma forma de constituição de direitos subjetivos.

d)       Tu Quoque (Até Você?)

O significado do tu quorque, de acordo com Fernando Noronha, remete ao grito de dor de Júlio César ao constatar a presença de seu filho adotivo Bruto entre os seus assassinos: Tu quoque, Brute, fili mi? (CHAVES; ROSENVALD, 2011, p. 194. Nota 124).

Provém da regra ética: não faça aos outros aquilo que não quer que façam com você. Quem não cumpre os seus deveres também não pode exigir os seus direitos com base na norma violada, sob pena de abuso.

Exemplos:

O art. 180 do Código Civil apresenta um claro exemplo de tu quoque, ao deixar de conferir proteção ao menor relativamente incapaz na situação prevista em lei, vejamos:

Art. 180. O menor, entre dezesseis e dezoito anos, não pode, para eximir-se de uma obrigação, invocar a sua idade se dolosamente a ocultou quando inquirido pela outra parte, ou se, no ato de obrigar-se, declarou-se maior.

Já no âmbito da jurisprudência do STJ, a Súmula 385 traz outro exemplo do instituto em análise. Assim dispõe a Súmula:


SÚMULA 385 DO STJ

Da anotação irregular em cadastro de proteção ao crédito, não cabe indenização por dano moral, quando preexistente legítima inscrição, ressalvado o direito ao cancelamento.

Convenhamos: foge ao razoável considerar que, pelo fato de alguém perder a “primariedade cadastral”, haverá uma espécie de salvo-conduto para qualquer credor irresponsavelmente conduzir o seu nome à negativação, convertendo o SPC e SERASA em tribunais de exceção, coma finalidade de constranger o devedor ao pagamento sob pena de impedimento ao acesso ao crédito. (CHAVES; ROSENVALD, 2011, p. 196)

Pelo teor literal do enunciado da súmula, o devedor que uma vez foi incluído no cadastro de inadimplentes devido a um problema momentâneo de crédito ficaria com uma “pecha” de mal pagador, e não poderia pedir a compensação por danos morais caso seu nome fosse incluído indevidamente por uma segunda vez, como se a honra da pessoa fosse manchada eternamente pela primeira inclusão.

Diante da perplexidade gerada por esta súmula, o STJ demonstrou, em julgados mais recentes, qual seria o real alcance dela nos casos concretos. Segundo informações colhidas por Gustavo Vettorato e Camila Fleury Canesin (2014)[4], a súmula tem aplicação específica nas ações propostas pelos consumidores contra os próprios órgãos encarregados da inclusão e registro dos dados (SPC/SERASA), quando eles deixam de promover a notificação exigida pelo art. 43,§2º do CDC:

Segue trecho obtido do artigo dos citados autores:

“Conforme consignado na decisão ora agravada, o acórdão recorrido não contraria o entendimento consolidado na Súmula 385 desta Corte. Isso, porque, consoante se verifica na leitura dos julgados que deram origem ao referido enunciado sumular, esse tem aplicação específica, referindo-se apenas às hipóteses em que a indenização é pleiteada em face do órgão mantenedor do cadastro de proteção ao crédito, que deixa de providenciar a notificação prevista no art. 43, § 2º, do CDC antes de efetivar a anotação do nome do devedor no cadastro. A propósito, confiram-se os AgRg no REsp 1.046.881/RS, AgRg no REsp 1.057.337/RS, AgRg no REsp 1.081.404/RS, AgRg no REsp 1.081.845/RS, REsp 992.168/RS, REsp 1.002.985/RS, REsp 1.008.446/RS e o REsp 1.062.336/RS(…)
(...) A hipótese dos autos, porém, refere-se à inscrição indevida pela inexigibilidade do débito, situação que não se amolda à questão tratada nos precedentes que deram origem ao referido enunciado sumular. Portanto, a existência de inscrições regulares realizadas anteriormente não afasta o dever de indenizar.”


Ademais, as decisões judiciais que negam reparação de danos aos consumidores com débitos irregularmente inscritos junto aos órgãos de cadastro de inadimplentes, por terem inscrições anteriores, com base na Súmula 385 do STF, fundamentam-se em entendimento inadequado segundo a própria súmula. A real orientação do STJ é de que quando o fornecedor inscreve arbitrariamente o cliente no cadastro de proteção ao crédito, havendo ou não inscrições anteriores, não o isenta de responder pelos danos morais decorrentes de tal ato. Isso porque a súmula tem aplicação específica nos casos de ações movidas contra os órgãos de cadastro de proteção ao crédito. Dessa forma, está clara a necessidade de revisão da jurisprudência dos tribunais que aplicam de forma genérica a Súmula 385, do STJ, para alinharem seus entendimentos a corte superior, e garantirem o direito a reparação dos danos morais aos consumidores prejudicados por inscrições indevidas nos órgãos de proteção ao crédito.


e)       Duty To Mitigate To The Own Lost (Dever de minorar as próprias Perdas)

É o dever de mitigar ou reduzir a própria perda. Na medida do possível, exige-se do credor de uma obrigação um comportamento proativo no sentido de contribuir para o agravamento do prejuízo do seu devedor. O dever de reduzir as próprias perdas tem íntima relação com a boa fé, na medida em que impõe um dever de colaboração ativa de uma parte em relação a outra.

A questão foi digna de um enunciado doutrinário, que foi aprovado nas jornadas de Direito Civil:

169 - Art. 422: O princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo. O credor deve adotar medidas céleres e adequadas para que o prejuízo do devedor não seja agravado.

A título de exemplo, imagine a situação de uma transportadora que teve um caminhão envolvido num acidente rodoviário. A mercadoria dispersa pode atrair a atenção de saqueadores, mas se houver tempo para o caminhoneiro comunicar a escolta ou a Polícia Rodoviária Federal, isso pode ser evitado.

O art. 771 do CC, inclusive, exige essa postura do segurado:

Art. 771. Sob pena de perder o direito à indenização, o segurado participará o sinistro ao segurador, logo que o saiba, e tomará as providências imediatas para minorar-lhe as conseqüências.

A inobservância desse dever de colaboração (contribuir para o aumento das próprias perdas) pode acarretar sanções à parte, como o pagamento de eventuais perdas e danos ou a redução do proveito postulado. Para ilustrar, imagine a situação de um banco que esperou muito tempo para cobrar a dívida de um contrato, deixando o valor do débito atingir patamar astronômico. Em caso dessa natureza, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ) determinou a substituição pelos juros contratados, pelos juros legais, como uma pena imposta ao banco (TJRJ, Apelação Cível nº 0010623-64.2009.8.19.0209):

DIREITO DO CONSUMIDOR. INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. DEVOLUÇÃO DO BEM. BOA-FÉ OBJETIVA. DEVER DE INFORMAÇÃO. DUTY TO MITIGATE THE LOSS. Verifica-se dos autos que o autor adquiriu um trator agrícola através de financiamento pela ré. Após o pagamento de algumas parcelas, em razão de dificuldades financeiras, solicitou a devolução amigável do bem. Ocorre que o réu não entrou em contato com o autor, não fornecendo qualquer tipo de informação. O CC/02, inspirado em valores éticos nas relações jurídicas, erigiu como princípio vetor de suas normas a boa-fé objetiva. A cláusula geral de boa-fé, tanto pelo CPDC, como pelo CC/02 traz deveres anexos aos negócios jurídicos, impondo aos contratantes a observância de comportamentos leais, probos, exigindo a correta e abrangente informação sobre todo o conteúdo do contrato. O autor agiu com lealdade e, logo que verificou a impossibilidade de manutenção do contrato, devolveu imediatamente o bem, sendo certo que deve merecer tratamento diferenciado daqueles devedores que simplesmente deixam de pagar a dívida, permanecendo com o bem indistintamente. O réu, por sua vez, além de não informar adequadamente ao autor sobre o processo de devolução amigável do bem, demorou o equivalente a dois anos e três meses para notificar o autor da venda do bem. Desta forma, tendo em vista que o art. 39, XII do CPDC impede que o réu deixe de estipular prazo para o cumprimento de sua obrigação, impõe-se o provimento parcial do recurso. Inegavelmente, as instituições financeiras colaboram com o endividamento exacerbado dos consumidores, infringindo o dever anexo de cooperação, relacionado diretamente com o principio da boa-fé objetiva. Nesse contexto, pertinente in specie a construção “duty to mitigate the loss”, ou mitigação do prejuízo pelo próprio credor que encontra amparo no Enunciado nº 169 na III Jornada de Direito Civil: “princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo”. Nesse diapasão, a partir da efetiva devolução do bem (16/11/2006), o autor só arcará com o saldo devedor reajustável pelo índice INPC, havendo a devida amortização do valor da venda do bem naquela data, considerando que o réu é quem deve sofrer o ônus de sua desídia, uma vez que o autor entregou o bem imediatamente e não foi informado prévia e adequadamente sobre a soma total a pagar após a devolução do bem, sendo esta uma exigência legal, nos termos do art. 52 do CPDC. PROVIMENTO PARCIAL DO RECURSO.

Por fim, vale o registro de que o dever de reduzir as próprias perdas vem sendo aplicados por inúmeros tribunais, inclusive pelo STJ, como se infere da decisão abaixo transcrita:
  
“[...] 1. Boa-fé objetiva. Standard ético-jurídico. Observância pelos contratantes em todas as fases. Condutas pautadas pela probidade, cooperação e lealdade. 2. Relações obrigacionais. Atuação das partes. Preservação dos direitos dos contratantes na consecução dos fins. Impossibilidade de violação aos preceitos éticos insertos no ordenamento jurídico. 3. Preceito decorrente da boa-fé objetiva. Duty to mitigate the loss: o dever de mitigar o próprio prejuízo. Os contratantes devem tomar as medidas necessárias e possíveis para que o dano não seja agravado. A parte a que a perda aproveita não pode permanecer deliberadamente inerte diante do dano. Agravamento do prejuízo, em razão da inércia do credor.  Infringência aos deveres  de cooperação e lealdade. 4. Lição da doutrinadora Véra Maria Jacob de Fradera. Descuido com o dever de mitigar o prejuízo sofrido. O fato de ter deixado o devedor na posse do imóvel por quase 7 (sete) anos, sem que este cumprisse com o seu dever contratual (pagamento das prestações relativas ao contrato de compra e venda), evidencia a ausência de zelo com o patrimônio do credor, com o consequente agravamento significativo das perdas, uma vez que a realização mais célere dos atos de defesa possessória diminuiriam a extensão do dano. 5. Violação ao princípio da boa-fé objetiva. Caracterização de inadimplemento contratual a justificar a penalidade imposta pela Corte originária, (exclusão de um ano de ressarcimento).
6. Recurso improvido. (REsp 758518-PR)

4.3.3. Função de Integração (Integrativa) (Art. 422)

Como observado em trechos de julgados citados acima, a boa fé, na sua função integrativa, atua como fonte de deveres jurídicos. Afirma-se, com isso, que a função integrativa da boa fé é aquela que liga a obrigação principal – que foi definida pelas partes – aos chamados deveres anexos ou laterais, que surgem da boa fé. Neste sentido, pode-se afirmar que “o conteúdo da relação obrigacional é dado pela vontade e integrado pela boa fé” (CHAVES; ROSENVALD, 2011, p. 168)

Pense no exemplo de um aluno que é vítima de um roubo – ou coisa pior, talvez – no ponto de ônibus em frente a uma faculdade. Neste exemplo, fica nítido que a obrigação principal, ou seja, o conteúdo da relação obrigacional, foi determinado pela vontade das partes, mas é certo, também, que a função integrativa da boa fé é fonte geradora de outros deveres, como o de proteção, no sentido de obrigar a faculdade a contratar segurança particular ou fazer convênios com a polícia militar para conferir maior segurança aos alunos.

Observa-se, então, que a noção de adimplemento está ampliada, na medida em que o contratante só pode ser considerado cumpridor de suas obrigações se e somente se, além de cumprir a obrigação principal, também observar os deveres anexos ou laterais.

Do contrário o adimplemento é considerado ruim e pode acarretar consequências para o descumpridor. Além do mais, o descumprimento do dever anexo ou lateral é conhecido pela doutrina como violação positiva do contrato.

É pertinente afirmar, ainda, que a existência de interesses opostos (a prestação de serviços educacionais, de um lado, e o pagamento das mensalidades, de outro) não impede que cada uma das partes respeite um mínimo ético e indispensável de lealdade e cuidado para com o outro (CHAVES; ROSENVALD, 2011). Neste sentido, os chamados boicotes e algumas chantagens exercidas pelo corpo discente também violam os deveres de colaboração.

Mas, afinal, quais são esses deveres anexos? Não se pode definir aprioristicamente um catálogo completo de cada um desses deveres impostos pela boa fé, mas para fins didáticos, podemos lembrar do rol apresentado pelo autor português Antônimo Manuel da Rocha Menezes de Cordeiro: proteção, esclarecimento e lealdade.

A professora Mônica Queiroz, por sua vez, sugere um método mnemônico para lembrar deles: P.I.C.LE.S (proteção, informação, colaboração, lealdade e solidariedade).

4.3.3.1. Dever de Proteção

Na lição de Heinrich Stoll, “os deveres de proteção pretendem proteger a contraparte dos riscos de danos à sua pessoa e ao seu patrimônio, na constância da relação complexa”. (STOLL apud CHAVES; ROSENVALD)

Como exemplo, cite-se o dever das faculdades, centros universitários e universidades de prestarem algum tipo de proteção aos alunos em relação à segurança dos mesmos. A segurança pública é tarefa do Estado, mas nada impede que o particular possa fazer alguma coisa para colaborar para evitar esse risco.

4.3.3.2. Dever de Informação

O dever de informar exerce papel fundamental nas relações de consumo, nas quais existe uma verdadeira assimetria informativa. Inclusive, afirma-se até que a informação, nas relações de consumo, integra a obrigação principal (art. 6º do CDC) e não os deveres anexos.

Um caso muito citado de descumprimento do dever de informação é o que se segue:

Direito do consumidor. Recurso especial. Ação de indenização por danos morais e materiais. Viagem ao exterior. Passageira boliviana que adquiriu bilhete aéreo com destino à França e teve seu ingresso negado naquele país por não possuir visto consular. Fornecedor que não prestou informação adequada sobre a  necessidade de obtenção do visto. Vício do serviço configurado. - De acordo com o § 2º do art. 20 do CDC, consideram-se impróprios aqueles serviços que se mostram inadequados para os fins que razoavelmente deles se esperam. - A aferição daquilo que o consumidor razoalmente pode esperar de um serviço está intimamente ligada com a observância do direito do consumidor à informação, previsto no inciso III do art. 6º do CDC. - Além de claras e precisas, as informações prestadas pelo fornecedor devem conter as advertências necessárias para alertar o consumidor a respeito dos riscos que, eventualmente, podem frustrar a utilização do serviço contratado. - Para além de constituir direito básico do consumidor, a correta prestação de informações revela-se, ainda, consectário da lealdade inerente à boa-fé objetiva e constitui o ponto de partida a partir do qual é possível determinar a perfeita coincidência entre o serviço oferecido e o efetivamente prestado. - Na hipótese, em que as consumidoras adquiriram passagens aéreas. internacionais com o intuito de juntas conhecer a França, era necessário que a companhia aérea se manifestasse de forma escorreita acerca das medidas que deveriam ser tomadas pelas passageiras para viabilizar o sucesso da viagem, o que envolve desde as advertências quanto ao horário de comparecimento no balcão de "check-in" até mesmo o alerta em relação à necessidade de obtenção do visto. - Verificada a negligência da recorrida em fornecer as informações necessárias para as recorrentes, impõe-se o reconhecimento de vício de serviço e se mostra devida a fixação de compensação pelos danos morais sofridos. Recurso especial provido para condenar a recorrida a pagar às recorrentes R$ 20.000,00 (vinte mil reais) a título de compensação por danos morais. Ônus sucumbenciais redistribuídos. (REsp 988595/SP)

Nesse caso, uma filha presenteou a mãe com uma passagem aérea para Londres e, de lá, para Paris. As filhas chegaram em Londres, mas a mãe foi impedida de embarcar para Paris, pois, por ser Boliviana, necessitava do respectivo visto para ingresso no território francês. A mãe retornou ao Brasil e a filha seguiu para a frança por conta de compromissos profissionais. Ação de danos materiais e morais.

4.3.3.3. Violação Positiva do Contrato

A violação positiva do contrato vem sendo considerada por muitos autores como uma nova forma de inadimplemento contratual. Ela decorre do descumprimento dos deveres anexos da boa fé. Nesse caso, a responsabilidade do agente é objetiva (En. 24 CJF)

24 - Art. 422: em virtude do princípio da boa-fé, positivado no art. 422 do novo Código Civil, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independentemente de culpa.

São exemplos de violação positiva do contrato:

- Médico realiza tratamento e alcança a cura do paciente. Porém, a técnica empregada é extremamente dolorosa, quando existiam meios alternativos na ciência para se alcançar idêntico resultado sem implicar sofrimento desnecessário ao paciente.

- uma empresa contrata com agência de publicidade a colocação de outdoors pela cidade. Todos os anúncios são colocados em locais de difícil acesso e iluminação.

- proprietário de haras adquire valioso cavalo e, em razão da falha no transporte, o animal chega em seu novo endereço magro e fragilizado.



[1] AZEVEDO, (20--) Disponível em: WWW.cjf.gov.br/revista/numero9/artigo7.htm.
[2] NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais. P. 151.
[3] Ruy Rosado de Aguiar Júnior, Extinção dos contratos, cit., p. 251-252.
[4] VETTORATO; CANESIN. Atenção ao Real Alcance da Súmula 385 do STJ. Olhar Jurídico (06/02/14). Disponível em: http://www.olhardireto.com.br/juridico/artigos/exibir.asp?artigo=Atencao_ao_Real_Alcance_da_Sumula_385_do_STJ&id=488. Acesso em 03/03/15.

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