terça-feira, 10 de março de 2015

UNIDADE I (5. EQUILÍBRIO ECONÔMICO E FINANCEIRO DO CONTRATO. JUSTIÇA CONTRATUAL)

5. JUSTIÇA CONTRATUAL (EQUILÍBRIO ECONÔMICO E FINANCEIRO DO CONTRATO)

5.1. Considerações Iniciais

O princípio da justiça contratual visa preservar o equilíbrio das prestações dos contratantes desde o momento da conclusão do contrato, para que cada parte efetivamente receba o equivalente ao que deu. Trata-se de uma aplicação da justiça comutativa ou corretiva, de Aristóteles, que requer moderação ou proporcionalidade nas prestações. (CHAVES; ROSENVALD, 2011).

Aristóteles na verdade apresentou dois conceitos distintos de justiça: a distributiva, que tem relação com o mérito (justiça distributiva = meritocracia), no sentido de distribuição de direitos políticos de acordo com o merecimento de cada um (elegibilidade/capacidade eleitoral) e justiça corretiva, que posteriormente foi chamada por outros filósofos de justiça comutativa, que é uma punição àqueles que praticaram crimes contra a honra de terceiros e por isso devem reparar os danos ocasionados às vítimas. (FLEISCHACKER, 2006)

Ou seja: dar a cada um o que é seu, de acordo com seu merecimento, é um dos sentidos da justiça para Aristóteles, mas a distribuição, aqui, é de cargos políticos. Por outro lado, o outro sentido de justiça para Aristóteles, a corretiva, está relacionada com a responsabilidade civil. Portanto, justiça corretiva, em Aristóteles, não tem nada a ver com “moderação” ou “proporcionalidade nas prestações”, como afirmam Rosenvald e Cristiano Chaves.

Sem pretensão de buscar um fundamento filosófico adequado, tenho para mim que o princípio da justiça opera com o equilíbrio econômico e financeiro do contrato, ou seja, com a economia interna do negócio. É claro que este princípio, ao lado da função social e da boa fé, também interfere no conteúdo da convenção, amenizando o rigor do pacta sunt servanda.

No entanto, cada princípio atua de forma peculiar: a função social protege a parte mais fraca contra práticas ou cláusulas abusivas (função interna ou eficácia intrínseca); a boa fé, por sua vez, funciona como limite ao exercício abusivo de direitos subjetivos e potestativos (função de controle da boa fé), enquanto que o princípio da justiça contratual opera com o equilíbrio ou a equação econômica e financeira do contrato.

Podemos, então, fazer a seguinte associação: a função social está para a parte vulnerável, assim como a boa fé está para a confiança e a justiça contratual para o equilíbrio das prestações.

Com efeito, a justiça contratual permite a revisão dos contratos quando o houver desproporção excessiva entre as prestações dos contratantes. Em termos técnicos, pode-se dizer que quando o contrato atende a essa proporcionalidade, ao referido equilíbrio, o negócio é sinalagmatico. A proporcionalidade é o sinalagma (equilíbrio), como lembra a figura de dois pratos de uma balança, na mesma posição horizontal.

No entanto, por vezes o contrato não apresenta esse equilíbrio, devido à quebra do sinalagma no momento de formação do negócio, ou supervenientemente, na fase de cumprimento da avença.

Para ilustrar, pense nas consequências devastadoras que um fenômeno natural pode provocar na economia e mais especificamente nos contratos. O trecho abaixo fornece exemplos nítidos de contratos que já nasceram desproporcionais (desequilíbrio genético):

“No verão de 2004, o furacão Charley pôs-se a rugir no Golfo do México e varreu a Flórida até o Oceano Atlântico. A tempestade, que levou 22 vidas e causou prejuízos de 11 bilhões de dólares, deixou também em seu rastro uma discussão sobre preços extorsivos.
Em um posto de gasolina em Orlando, sacos de gelo de dois dólares passaram a ser vendidos por dez dólares. Sem energia para refrigeradores ou ar-condicionado em pleno mês de agosto, verão no hemisfério norte, muitas pessoas não tinham alternativa senão pagar mais pelo gelo. Árvores derrubadas aumentaram a procura por serrotes e consertos de telhados. Prestadores de serviços cobraram 23 mil dólares para tirar duas árvores de um telhado. Lojas que antes vendiam normalmente pequenos geradores domésticos por 250 dólares pediam agora 2 mil dólares. Por uma noite em um quarto de motel que normalmente custaria 40 dólares cobraram 160 a uma mulher de 77 anos que fugia do furacão com o marido idoso e a filha deficiente.”[1]

E se o furacão Charley teve essa proporção, imaginem o impacto do terremoto ocorrido no Japão, em 1.923, que matou 300 mil pessoas e deixou 3 milhões de desabrigados?

Por outro lado, é fácil pensar em vários exemplos de situações que influem em contratos que nasceram sinalagmaticos, mas que se tornaram excessivamente onerosos posteriormente. Vejamos o exemplo citado por Álvaro Villaça de Azevedo[2]:

Suponhamos que um engenheiro se obrigue, fornecendo material e mão de obra, a construir para alguém uma casa, por oitocentos mil reais, reservando desta soma cento e cinquenta mil reais com seus honorários. Por imprevisível e brusca alteração no mercado, aumenta-se o preço do material de construção, eleva-se o salário mínimo, a ponto de impossibilitar o devedor ao cumprimento da obrigação. O que de material e de mão de obra tinha sido previsto para custear seiscentos e cinquenta mil reais, passa a custar oitocentos mil reais, colocando o engenheiro em posição de desempenhar o seu serviço, sem qualquer remuneração. (AZEVEDO apud GAGLIANO; FILHO, 2012, p. 314)

Diz-se, então, que o desequilíbrio, ou a “quebra do sinalagma”, pode ocorrer no momento inicial, na formação do contrato, ou pode ocorrer posteriormente. Logo, o desequilíbrio pode ser “genético” ou “superveniente”, conforme o caso.

Para cada uma dessas situações, o princípio da justiça contratual conta com mecanismos para corrigir as distorções. Neste sentido, a lesão (art. 157, do CC) é um dos mecanismos de correção do desequilíbrio genético e a teoria da imprevisão (art. 317 e 478, do CC) é o mecanismo de correção do desequilíbrio superveniente.

5.2. Lesão

5.2.1. Histórico

O Código de 1916, apegado às tradições liberais de sua época, nada dispôs sobre a lesão. Não era para menos, afinal, o diploma estava preocupado apenas em resguardar o direito de propriedade e o crédito. Tal instituto, que já era conhecida no direito romano, surgiu pela primeira vez, no Brasil, com a Lei de Economia Popular (Lei 1.521/51, art. 4º).

Hoje a lesão também está regulamentada no Código de Defesa do Consumidor (art. 6º, V, 39, V, e 51, IV) e no Código Civil (art. 157), e como todas as modalidades convivem no sistema, é preciso conhecer as características e os requisitos de cada uma delas, dividindo-as em espécies.

5.2.2. Espécies de Lesão

a)       Lesão no Direito Romano (lesão enorme/lesão propriamente dita/lesão enormíssima)

A lesão no direito romano adotava um critério objetivo tarifado para estabelecer se houve desequilíbrio em uma relação contratual. Para caracterizá-la, bastaria que, num contrato de compra e venda, o comprador pagasse um preço superior à metade do que fosse considerado “justo”.

b)       Lesão Usurária ou Usura Real

Esta modalidade de lesão pioneira no Brasil, prevista no art. 4º, da Lei de Economia Popular (Lei 1.521/51), que recebeu influência do BGB (§ 138), vai além da modalidade básica romana, por estabelecer, além de critérios objetivos, critérios subjetivos para a configuração do crime contra a economia popular. Vejamos o dispositivo legal em análise:

Art. 4º. Constitui crime da mesma natureza a usura pecuniária ou real, assim se considerando:

b) obter, ou estipular, em qualquer contrato, abusando da premente necessidade, inexperiência ou leviandade de outra parte, lucro patrimonial que exceda o quinto do valor corrente ou justo da prestação feita ou prometida.

Pelo que consta da lei, os requisitos para a configuração da lesão usurária são: a) requisitos subjetivos: necessidade, inexperiência ou leviandade da outra parte; b) requisito objetivo: lucro patrimonial que exceda o quinto do valor corrente ou justo da prestação feita ou prometida.

Além dos dois requisitos mencionados, a lesão usurária também exige, como terceiro requisito, o dolo de aproveitamento. Isso acontece porque, por se tratar de um tipo penal, é necessária a prova do dolo para a subsunção normativa. O dolo de aproveito se revela quando o contratante que se beneficia da situação tem pleno conhecimento de que o outro está em estado de necessidade, inexperiência e leviandade, e aproveita dessa situação para concluir o negócio prejudicial para o outro.

c)       Lesão do Código de Defesa do Consumidor

A lesão do CDC está prevista dentro dos direitos básicos do consumidor, no artigo 6º, inc. V, primeira parte. Observem a redação do dispositivo:

V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;

Diante da clareza do dispositivo em análise, é forçoso convir que a lesão, no sistema do CDC, apresenta somente um requisito objetivo – o estabelecimento de prestações desproporcionais – a diferença é que não há um critério tarifado para se estabelecer previamente o que seria essa desproporção, ao contrário do que ocorre nas duas modalidades examinadas.

Outro importante detalhe é que a cláusula que sujeita o contratante a uma prestação desproporcional é nula, nos termos do artigo 51, inc. IV do CDC:

Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

 IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade;

d)       Lesão Especial (Art. 157 do Código Civil)

A lesão prevista no Código Civil é denominada como “lesão especial” por autores como Marcelo Guerra Martins. Assim dispõe o art. 157:

Art. 157. Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta.

 De acordo com o art. 157, a lesão especial apresenta dois requisitos: a) subjetivo: premente necessidade ou inexperiência e b) objetivo: prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta.

O exame dos requisitos é feito casuísticamente, pois, afinal, somente o caso concreto poderá trazer elementos para se concluir que houve desproporção exagerada entre as prestações.

A diferença marcante entre a lesão do código civil e a lesão usurária é que a primeira não exige o dolo de aproveitamento para a caracterização do defeito do negócio. Exige-se, apenas, que o contratante beneficiado saiba que o outro está na condição de premente necessidade ou inexperiência, como nos revela o exemplo do prestador de serviço que cobrou 23 mil dólares para tirar duas árvores de um telhado de uma casa atingida pelo furacão Charley. No entanto, ao contrário da lesão usurária, não se exige que o contratante, sabedor dessa situação, aproveite a oportunidade para praticar preços abusivos.

5.3. Desequilíbrio Superveniente (Alteração das Circunstâncias)

5.3.1. Antecedentes Históricos

O sinalagma também pode ser rompido por circunstâncias posteriores à conclusão do contrato que alteram condições econômicas, sociais ou políticas que terminam por afetar a prestação de uma das partes do negócio.

Em casos tais, o negócio se formou sinalagmatico, mas ficou desequilibrado por uma situação superveniente. Sendo assim, o princípio da justiça contratual visa reestabelecer o equilíbrio econômico e financeiro quebrado posteriormente.

Na verdade, todo contrato de longa duração contém uma cláusula implícita que permite a modificação do negócio se as condições externas, de ordem natural, política, econômica e social, não permanecerem do modo que estavam ao tempo da conclusão da avença.

Em outras palavras, pode-se dizer que, nos contratos de execução continuada ou diferida, a obrigação das partes somente deverá ser cumprida se assim permanecerem (rebus sic stantidus) as condições externas vigentes ao tempo da sua celebração.

É simples: o contrato foi firmado no contexto de um cenário político, social e econômico. Esse cenário deve manter-se estável até certo ponto para possibilita que os contratantes possam efetivamente possam executar a sua prestação. Do contrário, se a alteração for abrupta e considerável, o contrato deve ser revisto. Essa é a essência da cláusula rebus sic standibus.

Essa regra de justiça remonta aos primeiros textos legais positivados, como o Código Hammurabi, cuja Lei 48, grafada em pedra há cerca de 2700 anos, prevê:

“Se alguém tem um débito a juros, e uma tempestade devasta o campo ou destrói a colheita, ou por falta de água não cresce o trigo no campo, ele não deverá nesse ano dar trigo ao credor, deverá modificar sua tábua de contrato e não pagar juros por esse ano” (J.M, Othon Sidou apud GAGLIANO; FILHO, 2012, P. 312)

Com efeito, a possibilidade de alteração do contrato diante da modificação das circunstâncias existentes ao tempo de sua formação é uma cláusula implícita a todo o contrato de longa duração.

Inclusive, ela sempre teve aplicação, tanto no império romano como na idade média. Aliás, a expressão rebus sic standibus está inserida num trecho maior: “contractus qui habent tractum sucessivum et dependentiam de futuro, rebus sic standibus intelligentur”, que significa: “os contratos de execução sucessiva, dependentes de circunstâncias futuras, entendem-se pelas coisas como se acham” (FIUZA, 2010, p. 53)

No entanto, é preciso ter em vista que, até pouco tempo atrás, por influência do paradigma liberal que prevaleceu nos séculos XVIII e XIX, o conteúdo do contrato era intangível e imodificável. Era o tempo em que reinava absoluto o postulado pacta sunt servanda (art. 1.134 do Código Francês).

Naquele contexto, por mais radicais que fossem as alterações econômicas e sociais, não se permitia a revisão, muito menos a resolução do contrato por onerosidade excessiva.

Acontece que, no alvorecer do século XX, especialmente no final da primeira grande guerra (1914-1918), o Estado passou a intervir mais incisivamente na economia do contrato para reestabelecer o equilíbrio gerado pelos efeitos devastadores da guerra.

Como adverte Eric Hobsbawn, até mesmo os Estados Unidos da América (do Norte!) se tornaram “o epicentro deste que foi o maior terremoto global medido na escala Richter dos historiadores econômicos” (2002, p. 91).

Foi justamente nessa época que houve o resgate da cláusula rebus sic standibus por uma série de teorias que justificam a necessidade de revisão ou resolução do contrato pela alteração das circunstâncias. E o mais curioso foi que o resgate oficial da cláusula rebus sic standibus ocorreu justamente no berço onde nasceu o ideário voluntarista no século XVIII: na frança!

De acordo com Darcy Bessone[3], a Lei Falliot, de 21 de maio de 1918, foi promulgada na França para possibilitar a revisão de alguns contratos celebrados entre os particulares e a Administração Pública gaulesa. (GAGLIANO; FILHO, 2012).

Na verdade o Conselho de Estado Francês, em 1916, já havia julgado o leading case entre a Prefeitura de Bordeaux e a Companhia Générale d’Eclairage da Cidade, que envolveu a seguinte situação:

A Cidade de Bordeaux celebrara com a sociedade concessionária da produção e distribuição de gás contrato que continha cláusula fixando o preço de venda do gás a seus usuários. Devido à alta do preço do carvão (em razão da ocupação das regiões produtoras e da dificuldade de transportá-lo) e dos salários, o preço inicialmente fixado revelou-se insuficiente, o que alterou o equilíbrio econômico e financeiro do contrato. A sociedade levou sua pretensão ao Conselho do Estado, que aceitou levar em consideração a imprevisão para fixar uma indenização à companhia vitimado desequilíbrio contratual. (FRANTZ, 2007, p.19)

Diante disso, desenvolveu-se na frança a chamada teoria da imprevisão, inspirada na cláusula rebus sic standibus, que pode ser invocada para a revisão de contratos de longa duração, desde que preenchidos determinados pressupostos.

5.3.1. A Teoria da imprevisão

5.3.1.1. Considerações Iniciais

Os contratos podem ser classificados, dentre outros critérios, pelo tempo necessário ao cumprimento das prestações. Contratos longos, como o financiamento de um imóvel, são chamados de contratos de trato sucessivo ou de prestações periódicas, pois o pagamento geralmente é realizado em períodos iguais de tempo (parcelas mensais). No entanto, pode acontecer do pagamento ser realizado no futuro, mas de uma só vez, caso em que o contrato será classificado como de execução diferida.

Por outro lado, os contratos em que a prestação é cumprida de imediato ou logo após a conclusão do contrato são chamados de contratos de execução instantânea.

Em suma, quanto ao momento da execução, os contratos podem ser:

a)       De Trato Sucessivo, execução continuada ou de Prestações periódicas;
b)       De execução diferida ou;
c)       De execução instantânea.


Com relação aos dois primeiros tipos de contrato, pelo fato da prestação ser cumprida num momento futuro, o contratante deve sopesar as circunstâncias – econômicas, financeiras, sociais e políticas – para decidir assumir a obrigação que somente será cumprida no momento posterior.

Portanto, só faz sentido falar da teoria da imprevisão nos contratos de execução continuada ou diferida, como enuncia o artigo 478 do Código Civil:

Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.

Mas antes de se examinar o art. 478 do Código Civil, é preciso analisar quais são os requisitos e pressupostos da teoria da imprevisão que, como visto, surgiu na França no primeiro quarto do século passado.

Neste aspecto, parece-me acertada a lição de César Fiuza (2010) ao dizer que a teoria da imprevisão é um gênero que comporta algumas outras teorias. A diferença, como se verá, é simplesmente quanto aos requisitos. Algumas são mais rigorosas, outras mais brandas, em relação à possibilidade de modificação dos contratos.

5.3.1.2.    Requisitos da Teoria da Imprevisão

De acordo com Carlos Roberto Gonçalves (2012), as teorias chamadas revisionistas, que defendiam a alteração do contrato em razão da mudança das circunstâncias, com amparo na cláusula rebus sic standibus, foram adaptadas e difundidas no Brasil pioneiramente por Arnoldo Medeiros da Fonseca, com o nome de teoria da imprevisão.

Atualmente, a teoria da imprevisão, adaptada ao direito brasileiro, contempla os seguintes requisitos, conforme Maria Helena Diniz[4]:

a) Vigência de um contrato comutativo de execução continuada; b) alteração radical das condições econômicas no momento da execução do contrato, em confronto com as do benefício exagerado para o outro; c) onerosidade excessiva para um dos contraentes e benefício exagerado para o outro; d) imprevisibilidade e extraordinariedade daquela modificação. (DINIZ apud TARTUCE, 2014, p. 171)

Como bem adverte Carlos Roberto Gonçalves (2012), o requisito da imprevisibilidade confere excessivo rigor à teoria da imprevisão, o que explica o fato dos tribunais brasileiros não aceitarem a inflação e simples alterações na econômica como causas supervenientes aptas, por si só, a justificarem a revisão do negócio. Isso explica o porquê da forte restrição do Poder Judiciário de aplicar a teoria da imprevisão diante dos picos inflacionários e planos econômicos durante a década de 1980. (CHAVES; ROSENVALD, p. 247)

Existem, portanto, determinadas alterações que se incluem na álea (risco) normal do contrato, como a escala inflacionária, o desemprego, prejuízos suportados por uma das partes e, a princípio, a variação cambial.  O que se exige é que a alteração seja de uma proporção tal que seja vista como uma álea extraordinária, ou seja, um risco efetivamente extraordinário e não previsto pelas partes, no momento de celebração do negócio.

Vejamos uma situação em que o STJ entendeu que o fato superveniente alegado pelo recorrente foi considerado risco ou álea normal do contrato:

TEORIA DA IMPREVISÃO. APLICABILIDADE, MESMO A MINGUA DE TEXTO EXPRESSO, POSTO QUE EXIGENCIA DA EQUIDADE. NECESSIDADE, ENTRETANTO, DE QUE SE APRESENTEM TODOS SEUS PRESSUPOSTOS. ENTRE ELES, O DE QUE OS FATORES IMPREVISIVEIS ALTEREM A EQUIVALENCIA DAS PRESTAÇÕES, TAL COMO AVALIADAS PELAS PARTES, DAI RESULTANDO EMPOBRECIMENTO SENSÍVEL PARA UMA DELAS COM ENRIQUECIMENTO INDEVIDO DA OUTRA. INEXISTE RAZÃO PARA INVOCAR ESSA DOUTRINA QUANDO, EM CONTRATO DE MUTUO, TENHA O MUTUARIO DIFICULDADE EM CUMPRIR AQUILO A QUE SE OBRIGOU, EM VIRTUDE DE PREJUIZOS QUE SOFREU. NÃO HA FALAR EM DESEQUILIBRIO DAS PRESTAÇÕES NEM EM ENRIQUECIMENTO INJUSTIFICAVEL DO MUTUANTE. (REsp 5.723/MG)

No caso em exame, o recorrente salientou que o mútuo visava financiar atividades rurais que foram muitíssimo prejudicadas por enchentes que atingiram a região. No entanto, o Superior Tribunal de Justiça ficou convencido de que o evento alegado não gerava vantagem excessiva para a instituição financeira credora. Além disso, entendeu que, se fosse admitida a teoria da imprevisão, isso implicaria em transferir para o banco os riscos inerentes à atividade econômica do mutuário.

O ministro relator ainda chegou a dizer que o que deveria ser considerado um fato excepcional, justificador de uma revisão, seria, por exemplo, a desvalorização violenta da moeda de um país, como ocorreu na Alemanha, no período no período entre guerras.

O impacto da desvalorização cambial alemã é noticiado por Eric Hobsbawn:

“No caso extremo – a Alemanha em 1923 – a unidade monetária foi reduzida a um milionésimo de milhão de seu valor  de 1913, ou seja, na prática o valor da moeda foi reduzida a zero. Mesmo nos casos menos extremos, as consequências foram drásticas. O avô do autor, cuja apólice de seguro venceu durante a inflação austríaca, gostava de contar a história de que sacou essa grande soma em moeda desvalorizada e descobriu que ela dava apenas para tomar um drinque em seu café favorito” (HOBSBAWN, 2002, p. 94)

Realmente a situação da Alemanha foi drástica e impressiona, especialmente porque, aqui no Brasil, o real também vem se desvalorizando desde 1994. Em pesquisa recente, um economista chamado Otto Nogami afirmou que a garoupa, o peixe que está estampado na cédula de R$ 100,00, virou um lambari. Segundo esse economista, uma nota de R$ 100,00 vale apenas R$ 22,35. (NOGAMI, 2014)[5]
Apesar disso, os tribunais dão uma amplitude restrita do que seriam fatos imprevisíveis. Vejamos mais um julgado:
 
CIVIL. VENDA DE APARTAMENTO. PLANO CRUZADO. PREÇO FIXO. TEORIA DA IMPREVISÃO. PRESSUPOSTO BASICO. E INAPLICAVEL A TEORIA DA IMPREVISÃO, PARA ACARRETAR REAJUSTAMENTOS DO PREÇO DE IMOVEL, QUANDO NÃO OCORRENTES CAUSAS OU ACONTECIMENTOS EXCEPCIONAVEIS E IMPREVISIVEIS, CAPAZES DE INVIABILIZAR O CUMPRIMENTO DA AVENÇA, SEM GRAVES PREJUIZOS PARA UMA PARTE E ENRIQUECIMENTO INDEVIDO DA OUTRA. CONTRATO A PREÇO FIXO, DURANTE A VIGENCIA DO PLANO CRUZADO QUE DEVE SER CUMPRIDO. (AgRg no Ag 12795/RJ)

Neste caso, à semelhança do anterior, o STJ também entendeu que a situação alegada não se enquadrava como aléa extraordinária. O recorrente pedia a revisão de um contrato de financiamento de um imóvel, que já tinha sido entregue, alegando que o índice de reajuste aplicado ao contrato sofreu abrupta elevação. No entanto, seu ponto de vista não prevaleceu, pois a situação não foi considerada como imprevista e extraordinária.

Por fim, cite-se outro precedente em que o STJ novamente se recusou a aplicar a teoria da imprevisão por conta da escalada inflacionária:

CIVIL. TEORIA DA IMPREVISÃO. A ESCALADA INFLACIONARIA NÃO E UM FATOR IMPREVISIVEL, TANTO MAIS QUANDO AVENÇADA PELAS PARTES A INCIDENCIA DE CORREÇÃO MONETARIA. PRECEDENTES. RECURSO NÃO CONHECIDO. (REsp 87.226/DF)

5.3.1.3.    A Maxidesvalorização Cambial em 1999.

Apesar de toda a dificuldade encontrada para se obter a revisão de um contrato pela teoria da imprevisão, uma situação específica, ocorrida no ano de 1999, foi entendida como circunstância imprevista e extraordinária. Trata-se da maxidesvalorização do real frente ao dólar, que ocorreu em 1999, que causou impacto nos contratos de leasing celebrados no Brasil.

Em primeiro lugar, deve-se esclarecer que o leasing é, em termos bem simples, uma locação com opção de compra. De um lado está o arrendador, aquele que aluga um bem; de outro, está o arrendatário, que fica com a posse e paga, em contrapartida, um aluguel por mês. No final do contrato, o arrendatário tem a opção de devolver o bem locado ou de adquirir a propriedade do mesmo, pagando, para tanto, um valor residual.
No caso, aqueles que tinham firmado contrato de leasing com instituições financeiras foram surpreendidos pela elevação considerável de sua prestação, porque o valor dela estava atrelada à câmbio do dólar. Com a expressiva desvalorização do real, o valor da moeda norte americana foi às alturas, e que ocasionou a onerosidade excessiva.

O precedente abaixo serve para ilustrar um dos casos que foram decididos pelo STJ:

Recurso especial. Leasing. Contrato de arrendamento mercantil expresso em dólar americano. Variação cambial. CDC. Teoria da imprevisão. Aplicabilidade. Alegação de ofensa aos arts. 115 e 145 do Código Civil. Ausência de prequestionamento (Súmulas 282/STF e 211/STJ). Dissenso jurisprudencial não caracterizado. Acórdão local em consonância com recentes decisões do Superior Tribunal de Justiça. I. - Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de. arrendamento mercantil. II. - A abrupta e forte desvalorização do real frente ao dólar americano constitui evento objetivo e inesperado apto a ensejar a revisão de cláusula contratual, de modo a evitar o enriquecimento sem causa de um contratante em detrimento do outro (art. 6º, V, do CDC). III - Agravo regimental desprovido. (aga 430.393/RJ)


5.3.2.         Teoria da Quebra da Base Objetiva

Como alternativa à teoria da imprevisão, prevista no Código Civil, pode-se pedir, no âmbito de uma relação de consumo, a revisão contratual por fato superveniente com base na teoria da Quebra da Base Objetiva, desenvolvida por Karl Larenz.

Segundo este autor:

 “‘todo contrato é celebrado na expectativa de que certa situação presente permaneça a mesma, tenham as partes consciência desse fato ou não. Sem isso, o fim colimado por elas não será concretizado, sua intenção não se realizará. Se ocorrer uma alteração total não prevista por ninguém e, por isso, não levada em conta na celebração do contrato, então, pode ser que as regras convencionadas pelas partes não mais correspondam a sua intenção, acarretando, para uma delas consequências tais, que levem a que o convencionado seja incompatível co um mínimo de justiça material. Neste momento, surge a questão, se não seria possível à parte prejudicada pela manutenção das regras originariamente convencionadas, exigir a resolução do contrato ou a adaptação de suas regras, de sorte a torná-las suportáveis, ante a alteração das circunstâncias’” (LARENZ[6] apud FIUZA, 2010, p. 59)

Com efeito, de acordo com boa parte da doutrina[7], a teoria da base objetiva foi adotada pelo Código de Defesa do Consumidor, como se extrai do art. 6º, inc. V, segunda parte:

V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;

Como se pode facilmente observar, a revisão depende de apenas dois requisitos: um fato superveniente e a onerosidade excessiva. Não se investiga se o fato é imprevisível e extraordinário e se, além disso, houve também vantagem exagerada para a outra parte.

Para a aplicação da teoria de Larenz, basta que um evento futuro acabe por frustrar as finalidades buscadas pelas partes quando da celebração do contrato.
Por exemplo: “o caso de um laboratório encomendar publicidade a uma agência sobre determinado medicamento e nas vésperas do início da divulgação ser o produto excluído de circulação pelo Ministério da Saúde” (CHAVES; ROSENVALD, 2011, p. 249)

Ou ainda: alugo um imóvel para instalar uma pensão ou uma boate, mas a finalidade é frustrada em razão de uma proibição administrativa; “um agente de viagens oferece pacote especial de viagens de ônibus para certo jogo de futebol. Consequentemente, vende várias passagens. O jogo é cancelado no último minuto;[8]

Foi a aplicação desta teoria que viabilizou a revisão dos contratos de leasing, acima mencionados.

5.3.3.         Revisão ou Resolução do Contrato?

Seja qual for a teoria, preenchidos os requisitos legais, o magistrado deverá promover a revisão do contrato, se isso for possível, é claro. Isso se deve porque, ao lado da justiça contratual, outro princípio contratual relevante também se aplica em tais situações: o princípio da conservação do contrato.

Assim, a solução para a demanda não será, a princípio, a resolução (extinção) do contrato, mas a sua revisão. Disso nos dá conta o art. 479:

Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições do contrato.

Para ilustrar, pensemos no exemplo das ações revisionais dos contratos de leasing indexados ao dólar na crise cambial de 1999. Se, por exemplo, o arrendatário tivesse proposto uma ação de resolução do contrato e o arrendador concordasse com a redução do seu proveito (redução do valor das parcelas), o juiz deveria acatar o pedido do réu, consistente na manutenção do negócio.

Em reforço, o art. 317 do Código Civil também pode ser invocado para que se promova a revisão do contrato:

Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.

No entanto, se a prestação tornar-se excessivamente onerosa e sendo impossível, por outro lado, a manutenção do contrato, aí sim, deve-se promover a extinção do negócio (resolução por onerosidade excessiva).

Basta imaginar na situação de um investidor que adquiriu terrenos na cidade do Rio de Janeiro para construir pousadas e pensões para receber turistas para as Olimpíadas de 2016, mas depois descobre que o evento foi cancelado pelas instituições organizadoras responsáveis.

Neste caso, a sentença que decretar a resolução retroage à data da citação, nos termos da parte final do art. 478:

Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.





















































































































[1]  (SANDEL, Michael J. Justiça: O que é fazer a coisa certa. Trad. Heloísa Martins e Maria Alice Máximo. Ed. Civilização Brasileiro. Rio de Janeiro: 2011. 4ª Ed. p. 11).
[2] Álvaro Villaça de Azevedo, O Novo Código Civil Brasileiro: Tramitação; Função Social do Contrato; Boa-Fé Objetiva; Teoria da Imprevisão e, em Especial, Onerosidade Excessiva (“Laesio Enormis”), in Questões Controvertidas – Série Grandes Temas de Direito Privado, coord. Mário Luiz Delgado e Jones Figueirêdo Alvesm São Paulo: Método, 2004, v. 2, p. 18.
[3] Darcy Bessone, Do Contrato – Teoria Geral, São Paulo: Saraiva, 1997, p. 218
[4] DINIZ, Curso.....,2007, p. 164)
[5] Ao longo de quase 20 anos do Plano Real, a inflação acumulada desde 1/07/1994 até 1/2/2014, medida pelo IPCA, foi de 347,51%.  Assim, um produto que custava R$ 1,00 em 1994 custa hoje R$ 4,47. O matemático financeiro José Dutra Vieira Sobrinho afirma que, em decorrência desse fato, a cédula de R$ 100,00 perdeu 77,65% do seu poder de compra desde o dia em que passou a circular. Com isso, o poder aquisitivo da nota de R$ 100,00 é hoje de apenas R$ 22,35. A perda desse poder aquisitivo é calculada por uma fórmula matemática na qual se divide o valor nominal da moeda pela taxa de inflação somada a 1. Quem quiser aprender a calcular a perda do poder aquisitivo da moeda pode acompanhar a explicação do professor Dutra no seu blog. "O real foi reduzido a quase um quinto do valor em 20 anos", diz o professor. "Mas isso ainda é uma vitória. Porque mesmo passados 20 anos, ela ainda mantém um certo poder aquisitivo. O histórico anterior era de uma inflação que chegava a 5.000% ao ano."

A garoupa virou lambari

"Com essa desvalorização, se o indivíduo ganhava R$ 100 em 1994 agora precisa de R$ 400 para poder atender aos seus desejos", diz o professor de Economia do Insper Otto Nogami. "A garoupa virou um lambari", referindo-se ao peixe que estampa a nota de R$ 100. A onça também virou um gatinho –a nota de R$ 50 hoje tem o poder de compra de R$ 11,17. Em 20 anos, o valor da moeda de R$ 0,01 praticamente desapareceu. Isso se deve por conta do efeito da inflação sobre o poder de compra. "A inflação é o  termômetro que mede a diferença entre o desejo de consumir e a capacidade de produzir", diz Nogami. Quando o desejo de consumir é maior do que a capacidade de produção, os preços sobem.

Inflação é problema crônico no Brasil

O crônico problema brasileiro com a inflação está, portanto, na incapacidade de o país produzir o suficiente para atender à demanda reprimida, ou seja, àqueles que querem consumir e pagam por isso. "Há também um incentivo inconveniente e imprudente por parte do governo de estimular compras sendo que não há a produção necessária para atender o consumo. Outro fator que estimulou a inflação foi a queda abrupta da taxa de juros até 2012. A oferta de crédito fez com que as pessoas se sentissem mais "ricas". "O brasileiro partiu para o consumo desenfreado, se endividou, se tornou inadimplente.  E a conta para pagar veio.

Como sair dessa situação?

É simples, diz o professor Nogami. A primeira providência é investir no setor produtivo para adequar as necessidades de produção ao consumo. O segundo item importante é o investimento em educação. Incluir na grade curricular conceitos fundamentais de finanças pessoais. Ensinar a importância de poupar. "Sonhos de consumo podem e devem ser realizados, mas mediante um planejamento. Primeiro economizar para realizar o sonho e não antecipar o sonho usando empréstimos e financiamentos que no médio prazo reduzem sua capacidade de consumir", diz. E, quando o produto estiver caro demais, deixe-o na prateleira. Afinal, quando o produto sobra, as liquidações aparecem. NOGAMI, Otto. 2014. Conteúdo disponível em: http://economia.uol.com.br/financas-pessoais/noticias/redacao/2014/02/18/apos-20-anos-real-perde-poder-de-compra-e-nota-de-r-100-vale-so-r-2235.htm. Acesso em: 10/03/15.

[6]LARENZ. Lehrbuch des Schuldrechts, cit., p. 321
[7] MARQUES, Claudia Lima, cf. Contratos no Código de Defesa do Consumidor, cit., p. 245. TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol. 3. 9ª edição. Ed. Método. Grupo Gen. 2014, São Paulo: p. 186)
[8] Exemplos de César Fiúza, 2011

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