sábado, 28 de fevereiro de 2015

JURISPRUDÊNCIA (QUEBRA DA BOA FÉ NA FASE PÓS-CONTRATUAL)


Recurso Inominado

Terceira Turma Recursal Cível
Nº 71000614792

Comarca de Porto Alegre
IBI ADMINISTRADORA E PROMOTORA LTDA.

RECORRENTE
TERESA MARIA SANTINI

RECORRIDO

                                                                           ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos.

Acordam os Juízes de Direito integrantes da Terceira Turma Recursal Cível  dos Juizados Especiais Cíveis do Estado do Rio Grande do Sul, à unanimidade, em NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO.
Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores Dra. Maria José Schmitt Sant anna (Presidente) e Eugênio Couto Terra.
Porto Alegre, 01 de março de 2005.


DR. EUGÊNIO FACCHINI NETO,
Relator.

RELATÓRIO

Trata-se de ação de reparação de danos morais, em razão do nome da autora ter permanecido inscrito no SPC, de setembro a dezembro de 2003, apesar de já ter pago sua dívida para com a ré.
A ré contesta, historiando a relação comercial mantida com a autora, e esclarecendo que a autora poderia ter ela própria providenciado no cancelamento da inscrição, bastando para tanto comprovar o pagamento.
Não houve instrução.
A sentença julgou procedente a ação e condenou a ré ao pagamento de uma indenização no valor de R$795,40, equivalente a quatro vezes o valor do débito.
Recorre a ré, buscando afastar sua responsabilidade.

VOTOS
Dr. Eugênio Facchini Neto (RELATOR)

É incontroverso que a autora permanceu inscrita no SPC por três meses, apesar de já ter pago seu débito. Também é incontroverso que o débito existia e que o cadastramento inicial era devido. Todavia, após o recebimento do crédito, deve o credor providenciar na baixa da inscrição. Uma das funções da boa-fé objetiva – um dos mais importantes princípios do direito obrigacional moderno – é aquela de proteção. Dentre os deveres de proteção, avulta aquele que cada uma das partes contratantes tem de zelar pelos interesses do outro contratante. Tais deveres perduram ao longo de toda a relação contratual, eventualmente iniciando-se antes da conclusão do contrato (responsabilidade pré-contratual, ou culpa in contrahendo) e perdurante até mesmo após sua execução (responsabilidade pós-contratual, ou culpa post factum finitum). É o caso em tela, em que o credor, após ter recebido seu crédito, deve, com a mesma agilidade com que solicitou a inscrição, providenciar na sua baixa.
Não pode o credor simplesmente “esquecer” seu antigo cliente e deixá-lo inscrito. O fato de que em certos casos o próprio devedor também pode solicitar a baixa da inscrição, comprovando o pagamento, isso não afasta o dever do credor de providenciar na atualização do cadastro do seu cliente, solicitando a baixa da inscrição relativamente à transação quitada.
Se o cadastramento é indevidamente mantido, configura-se o dano moral puro, pois presumido o prejuízo que tal circunstância acarreta, eis que impediente da utilização do sistema de crédito disponibilizado no mercado. A jurisprudência da Terceira e da Quarta Turma do STJ são uníssonas no sentido da ocorrência de danos morais na espécie, segundo se pode constatar acionando o site do STJ, setor de jurisprudência comparada, título “Civil – Danos morais – Inscrição no serviço de proteção ao crédito” (“É cabível indenização por danos morais quando, após a quitação da dívida, o nome do devedor permanece no cadastro de inadimplentes”).
Quanto ao valor fixado na sentença, é razoável e compatível com os parâmetros adotados nesta Turma Recursal.

VOTO, pois, por NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO, mantendo a sentença recorrida por seus fundamentos.
Suportará a recorrente os ônus sucumbenciais, fixando-se os honorários advocatícios em 20% sobre o valor da condenação.

NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO. UNÂNIME.

Eugênio Couto Terra - De acordo.
Dra. Maria José Schmitt Sant anna (PRESIDENTE) - De acordo.

Juízo de Origem: 2.JUIZADO ESPECIAL CIVEL PORTO ALEGRE - Comarca de Porto Alegre

domingo, 15 de fevereiro de 2015

SUGESTÕES DE TEMAS PARA REDAÇÃO FINAL (UNIFEMM. 5º PERÍODO C)



COMPRA E VENDA
1.       ART. 488 (A NULIDADE DA FIXAÇÃO UNILATERAL DO PREÇO E OS CONTRATOS DE ADESÃO) Art. 489. Nulo é o contrato de compra e venda, quando se deixa ao arbítrio exclusivo de uma das partes a fixação do preço.

A proposta da redação é a de identificar o alcance e o sentido de uma regra que fixa a nulidade do contrato de compra e venda se o preço for fixado unilateralmente por uma das partes. De início, é fácil perceber que o campo de aplicação desta norma é muito restrito, pois a maioria dos contratos celebrados atualmente é de adesão (todas as cláusulas, principalmente a que define o preço, já foi elaborada previamente por uma das partes). Neste caso, o objetivo da redação final é o de tentar identificar situações em que o art. 488 do Código Civil poderia ser aplicado.

2.                  ART. 519 (A NATUREZA JURÍDICA DA RETROCESSÃO)
Art. 519. Se a coisa expropriada para fins de necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, não tiver o destino para que se desapropriou, ou não for utilizada em obras ou serviços públicos, caberá ao expropriado direito de preferência, pelo preço atual da coisa.

Uma das formas de intervenção do Estado na propriedade privada se dá com a desapropriação. Neste caso, o ente desapropriante decide que um determinado bem imóvel, por exemplo, é importante para a construção de uma escola ou hospital e o expropria, mediante o pagamento de uma indenização ao proprietário. Sucede que se o Poder Público não der a destinação prevista para o bem e decidir vendê
lo, o expropriado (aquele que perdeu o bem) tem o direito de preferência na aquisição. A pergunta que fica, então, é: o direito de preferência do expropriado tem natureza obrigacional ou real? Se o bem for vendido sem a terceiros sem que o expropriado tenha manifestado seu direito de preferência, ele poderá depositar o valor pago e reivindicar o bem para si?

3.                  ART. 475, 526 (Teoria do Adimplemento Substancial na venda com reserva de domínio, na alienação fiduciária e no arrendamento mercantil)

Nesses três contratos, na hipótese de inadimplemento, o credor pode reaver o bem para si ou executar o saldo devido. Mas e se o devedor pagou, por exemplo, 53 de 60 parcelas? O credor poderia reaver o bem? A proposta deste tema é para falar sobre a teoria do Adimplemento Substancial.

DOAÇÃO
1.                  DOAÇÃO INOFICIOSA. (PRAZO PARA O AJUIZAMENTO DA AÇÃO DE REDUÇÃO)

Apesar da lei qualificar como nula a doação inoficiosa, o STJ vem entendendo que o prazo para se reivindicar a posse dos bens ou valores doados em excesso é decenal. Esse entendimento rompe com outro baluarte da teoria das invalidades, que afirma o caráter imprescritível do ato nulo (não convalesce com o tempo).

2.                   DOAÇÃO AO CONCUBINO (art. 550)

A lei confere ao cônjuge inocente a possibilidade de anular uma doação feita pelo cônjuge adúltero ao seu cúmplice, mesmo que o bem seja de propriedade exclusiva daquele que realizou a doação. Neste sentido, proposta da redação final é a de analisar se o teor da norma tem caráter excessivamente moralista, como apontam alguns autores, já que se o cônjuge inocente não concordou com a doação, ele poderia pedir o divórcio, por exemplo. Muitos autores criticam a disposição afirmando que ela restringe indevidamente a autonomia privada.

LOCAÇÃO
1.                  ART. 35, L. 8245/91, 576 CC/02 E SÚMULA 335 DO STJ (Invalidade da Cláusula de Renúncia de Indenização e Direito de Retenção por benfeitorias necessárias nas locações celebradas por contrato de adesão)

O objetivo da redação final é o de examinar se é válida a cláusula de renúncia do direito de indenização e o de retenção por benfeitorias necessárias e úteis no contrato de locação.

2.                  ART. 3º, VI DA L. 8009/09 E ART. 6º DA CR/88. (penhora do bem de família do fiador em contrato de locação)

O objetivo da redação final é o de questionar a constitucionalidade do art. 3º, VI da Lei 8.009/90, que permite a penhora do bem de família do fiador do contrato de locação.

SEGURO
1.                  ART. 757. P. ÚNICO (ASSOCIAÇÕES QUE COMERCIALIZAM SEGURO AUTOMOTIVO SEM AUTORIZAÇÃO. O OBJETO É ILÍCITO?)

2.                SEGURO DE VIDA E SAÚDE. DECLARAÇÃO DO SEGURADO E EXAME MÉDICO. DOENÇA PRÉ-EXISTENTE

A seguradora que não realiza exame médico no contrato de seguro de vida ou saúde assume o risco do pagamento da cobertura? Em quais situações?

3.                  ATRASO NO PAGAMENTO DO PRÊMIO E A OBRIGAÇÃO DO PAGAMENTO DA GARANTIA CONTRATADA.

A seguradora não pode extinguir unilateralmente o contrato de seguro se o segurado não quitou alguma parcela do prêmio. Para tanto, é preciso notificar o segurado antes, para que este seja configurado em mora. Não seria demasiada condescendência com maus pagadores?

4.                  O DOGMA DA INDISSOLUBILIDADE DO VÍNCULO CONTRATUAL

A proposta é fazer um estudo de caso sobre o REsp 1.073.595-MG no qual o STJ forçou a renovação e a manutenção de um contrato de seguro de vida renovado ao longo de 30 anos.

5.                  QUESTÕES SOBRE A EMBRIAGUEZ E O CONTRATO DE SEGURO

A embriaguez pode se apresentar como causa excludente do direito à indenização em algumas hipóteses. O problema é que o Poder Judiciário impõe um ônus probatório muito difícil às seguradoras, o que pode ser uma brecha para fraudes.

6.      SÚMULA 465 DO STJ

A súmula 465 do STJ Ressalvada a hipótese de efetivo agravamento do risco, a seguradora não se exime do dever de indenizar em razão da transferência do veículo sem a sua prévia comunicação) ignora os deveres de informação, colaboração e lealdade e cria uma espécie de cessão obrigatória do contrato de seguro.

7.      ART. 798 (Suicídio Premeditado e a Boa Fé Objetiva Pré Contratual)
TRANSPORTE
1.                  O ASSALTO COMO FORTUITO EXTERNO NO CONTRATO DE TRANSPORTE DE PESSOAS. O ESTADO RESPONDE NA AÇÃO REGRESSIVA?

Proposta: analisar se o assalto ou roubo pode ser entendido como fortuito externo no transporte de pessoas, como vem entendendo o STJ e se o Estado responde em caráter regressivo.

2.      ATRASO NO TRANSPORTE AÉREO

A proposta é analisar situações relacionadas ao atraso no transporte aéreo, como, por exemplo, se cabe indenização por dano moral em atraso inferior a 4 horas ou se o atraso superior esta marca gera necessariamente dano moral o que pode ser considerado motivo de força maior etc.



sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

UNIDADE I (Principiologia Contratual - Parte I)



III.              PRINCIPIOLOGIA CONTRATUAL 

Toda a estrutura do Direito contratual veio da Revolução Francesa. Historicamente, contrato foi pacta sunt servanda. O contrato precisava espelhar a liberdade humana. E a liberdade chega nos contratos pela autonomia da vontade. Sou livre para contratar e aquilo que eu contratei eu devo cumprir. Assim, o modelo contratual historicamente edificado, fundava-se na liberdade.

Porém, no mundo moderno essa liberdade foi mitigada. Houve a necessidade de intervir no contrato. E quando o Estado intervinha, o contrato era expulso do direito civil. Isso se alterou significativamente com o CC/02, o qual buscou inspiração na tábua axiológica de valores da Constituição: dignidade da pessoa humana; erradicação da pobreza e solidariedade social.

Inspirado nesta tábua de valores, o Código Civil estabeleceu os princípios fundamentais do Direito Contratual. São três os princípios fundamentais do Direito Contratual:

è  BOA FÉ OBJETIVA – art. 113 e 422
è  FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO – art. 421
è  EQUILÍBRIO ECONÔMICO E FINANCEIRO – 478 e 317

Mas contrato não deixou de ser instrumento de satisfação de interesses privado. Apenas se humanizou e respeita e cooperação recíproca.

Adimplir significará atender a todos os interesses envolvidos na obrigação, abarcando tanto os deveres ligados à prestação propriamente dita, como aqueles relacionados à proteção dos contratantes em todo o desenvolvimento do processo obrigacional.

Enunciado 24 da Jornada: “Em virtude do princípio da boa fé, positivado no art. 422 do CC, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independentemente de culpa.

O quadro abaixo traz algumas informações importantes sobre a linha evolutiva dos contratos no tempo:

    PARADIGMA LIBERAL
Séc. XVIII e início Séc. XIX
PARADIGMA SOCIAL
Séc. XIX parte SÉC XX
PARADIGMA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
CR/88
Contexto histórico: Revoluções Burguesas. Código Napoleônico

Valor principal:
Vontade. Voluntarismo Oitocentista

Principais pensadores:
Kant. A vontade individual é a única fonte de toda a obrigação jurídica”

Economia: livre mercado
“mão invisível”

Principiologia Contratual.
è  Autonomia da vontade.
è  Consensualismo
è  Relatividade Contratual
Contexto Histórico: Revolução Industrial. Marxismo. Quebra da Bolsa de Nova Iorque.

Valor Principal
Intervenção Estatal

Lacordeire: “Entre o forte e o fraco, entre o rico e o pobre, é a liberdade que escraviza; é a lei que liberta”

Orientação Econômica.
Dirigismo contratual. Keynes.

Fase de Reformulação
Contexto histórico. Processo de Redemocratização


Tábua axiológica.
Dignidade humana
Solidariedade
Erradicação da pobreza

Art. 170 da CR.

Principiologia Contratual Contemporânea.

è  Boa Fé Objetiva
è  Função Social
è  Justiça Contratual

1.       Princípio da Autonomia da Vontade

Entre os autores como Carlos Alberto da Mota Pinto, o princípio nuclear dos contratos é o da autonomia da vontade, que pode ser entendido como o “poder reconhecido aos particulares de autorregulamentação dos seus interesses, de autogoverno da sua esfera jurídica” (PINTO apud GONÇALVES, 2012, p. 41).

Afirma-se que a autonomia da vontade abrange a liberdade para as partes escolherem se vão contratar ou não, a liberdade de escolha do outro contratante, assim como a liberdade para definir o conteúdo do contrato. (GONÇALVES, 2012; FIUZA, 2010)

De modo ainda mais técnico, há quem diferencie liberdade de contratar de liberdade contratual. A liberdade de contratar é a autonomia de escolha do outro contratante, enquanto a liberdade contratual é a autonomia para a definição do conteúdo do contrato (TARTUCE, 2014).

Nesta perspectiva, a autonomia da vontade resulta dessas duas liberdades (de contratar  e contratual) como princípio que constitui “a liberdade que a pessoa tem para regular seus próprios interesses.”

No entanto, essa ampla liberdade só existe mesmo em teoria, já que, na prática, ninguém tem a escolha de contratar ou não, já que todos têm necessidades básicas, como alimentação, transporte, higiene, educação, saúde etc. Da mesma forma, em certos setores não existe liberdade de escolha do contratante, a exemplo de alguns serviços públicos como água, energia, telefonia etc. Por fim, não é correto dizer que as partes estão livres hoje para definir o conteúdo do contrato, pois a maioria dos contratos que são celebrados atualmente são os chamados “contratos de adesão”, aqueles cujas cláusulas já estão elaboradas de forma prévia e unilateral por um dos contratantes.

Sendo assim, não se pode tirar proveito de explicações tão pobres sobre o princípio da autonomia da vontade. Aliás, hoje muitos autores estão substituindo o termo autonomia da vontade pela autonomia privada. Mas por que substituir um termo pelo outro?

No período das revoluções burguesas do século XVIII, a vontade era a expressão máxima da liberdade do indivíduo. Neste sentido, Jean J. Rousseau afirmava que “O Ser humano verdadeiramente livre apenas quer o que pode e faz o que lhe agrada”. Na mesma linha, Immanuel Kant afirmava que “a vontade individual é a única fonte de toda a obrigação jurídica”.

Dentre todas as frases eloqüentes dos filósofos do período, talvez a mais marcante e significativa seja a de Alfred Fouillée, que disse: “quem diz contratual diz justo”. Outro pensamento marcante e digno de nota é o de Jean Carbonnier, o qual afirmava que a justiça contratual é um fato determinado pela livre concorrência, não uma exigência ideal.  

Mas o que isso tem a ver com a autonomia da vontade, afinal? O que os autores clássicos, filósofos e economistas, queriam dizer é que a vontade manifestada contratualmente era absoluta. Não havia espaço para se questionar se um contrato era justo ou não, pois se a pessoa manifestou sua vontade sem nenhum tipo de vício de consentimento, não cabia ao Estado intervir para analisar as circunstâncias fáticas da negociação.

Neste aspecto, como bem salientado por Isso Chaitz Scherkerkewitz (2013, p. 31), “No passado, quando se pensava em um contrato se pensava na necessidade de absoluta obediência ao que foi pactuado pelas partes, não sendo relevantes para o direito a motivação das partes, os acontecimentos futuros, o próprio equilíbrio das obrigações e os efeitos gerados pelo cumprimento do contrato.”

Portanto, a crítica que pesa sobre o termo autonomia da vontade é a de que a expressão traz consigo alta carga do ideário liberal oitocentista, que concebe a vontade de maneira absoluta, ignorando as circunstâncias fáticas ou as razões e motivos que levaram as partes a contratar. Era como se o contrato expressasse a faculdade de “querer no vazio”, na crítica apresentada por Emílio Betti (Apud CHAVES; ROSENVALD, 2011).

Assim, a autonomia da vontade se contentava apenas com a estrutura do contrato. O que importava é se ele foi um negócio jurídico abstrato, formado por pelo menos duas partes, que exprimiram livremente o seu consentimento, se foi observada a forma prescrita em lei e se o objeto é lícito, possível, determinado ou determinável.

Isso acontecia porque, no contexto do liberalismo do século XVIII, o direito se preocupava só com a estrutura e não dava qualquer importância para o caso concreto ou com a realidade em que as partes estavam inseridas. Em outras palavras, importava saber o que o direito era, mas não para que ele servia.

Ora, o Direito não é apenas uma estrutura que está a serviço do credor para executar o devedor inadimplente. Muito mais que isso. O direito tem uma função, porque ele tem fins a cumprir. Não é por acaso que o art. 3º da Constituição elenca os objetivos da RFB:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
 III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Com isso, “tem-se o contrato como instrumento de realização das finalidades traçadas pelo ordenamento jurídico, e não mais dos interesses dos contratantes isoladamente considerados” (CHAVES; ROSENVALD, 2011, p. 135)

Esta nova maneira de conceber o contrato, não sob o prisma estrutural, mas sobre a função que ele cumpre na sociedade, é retratada por Norberto Bobbio no livro Da Estrutura à Função (Dalla strutura Allá funzione). O livro mostra a superação da perspectiva liberal do contrato como estrutura, para analisar a função ou as finalidades que ele cumpre na sociedade. O contrato deixa de ser uma estrutura abstrata e passa a ser instituto destinado a cumprir uma função, que é a de assegurar os objetivos previstos na constituição.

Flávio Tartuce (2014) aponta outro fator decisivo para a superação do princípio da autonomia da vontade: a predominância dos contratos de adesão na economia de mercado. Isso porque, nos contratos de adesão, ou contratos standard (Contratos-Modelo, Contratos-Formulário), a vontade tem um papel secundário, já que todo o conteúdo do negócio foi elaborado de forma prévia e unilateral por uma das partes, cabendo ao outro, chamado aderente, aceitar ou não (É pegar ou largar, take it or leave it).

Diante dessa nova realidade de contratação em massa, fala-se até em uma suposta crise dos contratos, “pois os contratantes não possuem mais a livre autonomia da vontade diante dos contratos padronizados e de adesão [...]” (SCHERKERKEWITZ, 2013)

Todavia, não se trata propriamente de uma crise, mas sim do deslocamento do elemento central da autonomia, que era a vontade, e passou a ser a função social.

Por tudo isso, a definição de autonomia privada não mais está pautada na liberdade de se contratar ou não, da escolha do contratante ou da liberdade de se definir o conteúdo do contrato. Um conceito como este não se amolda mais à realidade em que vivemos. A autonomia privada pode ser entendida como “o poder concedido ao sujeito para criar a norma individual nos limites deferidos pelo ordenamento jurídico”. (CHAVES; ROSENVALD, 2011, p. 132).

Essa idéia de limites objetivos à autonomia privada está presente no art. 421 do Código Civil:

Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.

Sendo assim, as partes têm o direito indeclinável de autorregulamentar seus interesses, mas estão sujeitos às limitações impostas por sistema jurídico, até porque nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública previstos no Código Civil para assegurar a função social da propriedade ou dos contratos (Art. 2.035, p. único)

1.1.  Exemplos Práticos Sobre o Processo de Funcionalização do Contrato

a)       Cláusula Limitativa do Tempo de Internação nos Planos de Saúde
 
Como visto, a autonomia privada é a esfera de liberdade em que as partes têm o poder de criar regras para autorregular suas relações, dentro dos limites e observadas as finalidades do sistema jurídico. O Direito já não se contenta apenas com a estrutura do contrato. Ele quer saber quais são as circunstâncias do caso concreto e as finalidades almejadas pelas partes. 
 
Para ilustrar, 
 
DIREITO CIVIL E DO CONSUMIDOR. PLANO DE SAÚDE. LIMITAÇÃO TEMPORAL DE INTERNAÇÃO. CLÁUSULA ABUSIVA. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR, ART. 51-IV. UNIFORMIZAÇÃO INTERPRETATIVA. PREQUESTIONAMENTO IMPLÍCITO. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. I - E abusiva, nos termos da lei (CDC, art. 51-IV), a cláusula prevista em contrato de seguro-saúde que limita o tempo de internação do segurado. II – Tem-se por abusiva a cláusula, no caso, notadamente em face da impossibilidade de previsão do tempo da cura, da irrazoabilidade da suspensão do tratamento indispensável, da vedação de restringir-se em contrato direitos fundamentais e da regra de sobredireito, contida no art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, segundo a qual, na aplicação da lei, o juiz deve atender aos fins sociais a que ela se dirige a às exigências do bem comum. III – Desde que a tese jurídica tenha sido apreciada e decidida, a circunstância de não ter constado do acórdão impugnado referência ao dispositivo legal não é obstáculo ao conhecimento do recurso especial. (STJ - REsp: 251024 SP 2000/0023828-7, Relator: Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, Data de Julgamento: 27/09/2000, S2 - SEGUNDA SEÇÃO, Data de Publicação: DJ 04/02/2002 p. 270 LEXSTJ vol. 151 p. 127 RSTJ vol. 154 p. 193)

O acórdão deste caso não está disponível no STJ, mas segundo Chaves e Rosenvald (2011), trata-se de uma proposta por um pai de uma filha ainda bebê, que estava internada na UTI de um hospital. O tratamento ia cessar, porque no contrato havia cláusula limitativa de diária de internação. A seguradora só cobria 60 dias de internação a cada 12 meses.

Após este acórdão, que foi julgado pela Segunda Seção do STJ, aprovou-se a Súmula 302 do STJ, que enuncia: É abusiva a cláusula contratual de plano de saúde que limita no tempo a internação hospitalar do segurado.

Percebe-se, assim, que a esfera de liberdade da autonomia privada não serve apenas para atender finalidades apenas dos contratantes, pois dever observar as finalidades maiores traçadas pela constituição. No caso do plano de saúde, é óbvio que a operadora busca o lucro para realizar aquela atividade, mas não se pode negar que este contrato também tem a finalidade de tutelar a integridade física e psíquica do segurado.

b)       Cláusula de Carência

Ainda sobre os planos de saúde, não se considera abusiva a cláusula de carência. Afinal, não se afigura dezarrazoada a exigência de um período mínimo de contribuição e permanência no plano para que o contratante possa usufruir de determinados benefícios.

Em certo caso julgado pelo STJ, uma mulher contribuiu por quase três anos para o plano, mas antes de finalizar o período de carência, que era de 36 meses, foi acometida por uma doença grave causada por um tumor neurológico que afetou algumas vértebras na coluna cervical. A seguradora recusou a realização da cirurgia necessária à remoção do tumor (laminectomia descompressiva na região cérvico-torácica). No entanto, o STJ considerou abusiva a aplicação da cláusula de carência (de 36 meses), naquelas circunstâncias, por se tratar de uma doença grave e considerando-se, também, o fato de que ela pagou parte considerável das contribuições do período de carência.

Assim como o primeiro exemplo citado (cláusula limitativa de diária de internação), o período de carência pode ser abusivo em determinadas situações. Veja qual foi a ementa do acórdão em análise:

CIVIL E PROCESSUAL. ACÓRDÃO ESTADUAL. NULIDADE NÃO CONFIGURADA. PLANO DE SAÚDE. CARÊNCIA. TRATAMENTO DE URGÊNCIA. RECUSA. ABUSIVIDADE. CDC, ART. 51, I. I. Não há nulidade do acórdão estadual que traz razões essenciais ao deslinde da controvérsia, apenas por conter conclusão adversa ao interesse dos autores. II. Irrelevante a argumentação do especial acerca da natureza jurídica da instituição-ré, se esta circunstância não constituiu fundamento da decisão. III. Lídima a cláusula de carência estabelecida em contrato voluntariamente aceito por aquele que ingressa em plano de saúde, merecendo temperamento, todavia, a sua aplicação quando se revela circunstância excepcional, constituída por necessidade de tratamento de urgência decorrente de doença grave que, se não combatida a tempo, tornará inócuo o fim maior do pacto celebrado, qual seja, o de assegurar eficiente amparo à saúde e à vida. IV. Recurso especial conhecido em parte e provido. (STJ 466.667-SP, Relator: Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, Data de Julgamento: 27/11/2007, T4 - QUARTA TURMA)
  
c)       Venda Casada

Certa empresa que atua no ramo cinematográfico, que disponibiliza salas para o público em geral, praticava uma conduta que era a seguinte: permitia-se a entrada nas salas do cinema com alimentos comprados no próprio estabelecimento (pipocas, refrigerantes, balas, doces etc). Mas aquele que comprova um alimento em outro lugar – MacDonalds – por exemplo, era impedido de ingressar na sala.

O que se nota é que a imposição da empresa de cinema é venda casada, já que ela só permite a aquisição dos seus produtos. Se a pessoa quiser comprar o bilhete e estiver com fome, só pode comprar os produtos alimentícios vendidos na bilheteria.

Este é mais um exemplo de que a esfera de liberdade da autonomia privada não é imune do controle do Poder Judiciário, ainda mais quando se trate de práticas abusivas. O que  a empresa está fazendo é, ainda que indiretamente (por via obliqua), venda casada (condicionar a venda ou aquisição de produto ou serviço, mediante a aquisição de outro produto ou serviço).

ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. APLICAÇÃO DE MULTA PECUNIÁRIA POR OFENSA AO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. OPERAÇÃO DENOMINADA 'VENDA CASADA' EM CINEMAS. CDC, ART. 39, I. VEDAÇÃO DO CONSUMO DE ALIMENTOS ADQUIRIDOS FORA DOS ESTABELECIMENTOS CINEMATOGRÁFICOS.
1. A intervenção do Estado na ordem econômica, fundada na livre iniciativa, deve observar os princípios do direito do consumidor, objeto de tutela constitucional fundamental especial (CF, arts. 170 e 5º, XXXII).
2. Nesse contexto, consagrou-se ao consumidor no seu ordenamento primeiro a saber: o Código de Defesa do Consumidor Brasileiro, dentre os seus direitos básicos "a educação e divulgação sobre o
consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações" (art. 6º, II, do CDC).
3. A denominada 'venda casada', sob esse enfoque, tem como ratio essendi da vedação a proibição imposta ao fornecedor de, utilizando de sua superioridade econômica ou técnica, opor-se à liberdade de escolha do consumidor entre os produtos e serviços de qualidade satisfatório e preços competitivos.
4. Ao fornecedor de produtos ou serviços, consectariamente, não é lícito, dentre outras práticas abusivas, condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço(art. 39, I do CDC).
5. A prática abusiva revela-se patente se a empresa cinematográfica permite a entrada de produtos adquiridos na suas dependências e interdita o adquirido alhures, engendrando por via oblíqua a cognominada 'venda casada', interdição inextensível ao estabelecimento cuja venda de produtos alimentícios constituiu a essência da sua atividade comercial como, verbi gratia, os bares e restaurantes.
6. O juiz, na aplicação da lei, deve aferir as finalidades da norma, por isso que, in casu, revela-se manifesta a prática abusiva.
7. A aferição do ferimento à regra do art. 170, da CF é interditada ao STJ, porquanto a sua competência cinge-se ao plano infraconstitucional.
8. Inexiste ofensa ao art. 535 do CPC, quando o Tribunal de origem, embora sucintamente, pronuncia-se de forma clara e suficiente sobre a questão posta nos autos. Ademais, o magistrado não está obrigado a rebater, um a um, os argumentos trazidos pela parte, desde que os fundamentos utilizados tenham sido suficientes para embasar a decisão.
9. Recurso especial improvido. (STJ 744602/RJ, Relator: Ministro LUIZ FUX, Data de Julgamento: 01/03/2007, T1 - PRIMEIRA TURMA)

2.       Princípio da Obrigatoriedade, Força Obrigatória dos Contratos ou Intangibilidade Contratual

2.1.  Conceito e Previsões Legais

Este princípio diz basicamente que o contrato faz lei entre as partes. A definição é muito conhecida no meio jurídico, pois já constava do Código Francês de 1804, em seu art. 1.134, nos seguintes termos: “as convenções legalmente constituídas têm o mesmo valor que a lei relativamente às partes que a fizeram” (GONÇALVES, 2012, p. 41). Mas a origem do princípio da obrigatoriedade está no direito romano, com a regra pacta sunt servanda.

Para Caio Mario da Silva Pereira, o princípio da obrigatoriedade significa “a irreversibilidade da palavra empenhada”. (PEREIRA apud GONÇALVES, 2012, p. 49)

Na legislação brasileira o princípio não está previsto de maneira expressa, como a função social (art. 421) e a boa fé (113, 187 e 422), mas alguns dispositivos demonstram, pelo menos implicitamente, a força obrigatória dos contratos, vejamos:

Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.

Art. 391. Pelo inadimplemento das obrigações respondem todos os bens do devedor.

Art. 475. A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos.

Ou seja, o princípio da obrigatoriedade já não tem mais aquele rigor típico do período liberal do século XVIII, mas continua a ser um importante mecanismo de tutela ao crédito e de segurança jurídica.

Aliás, o pagador pontual, adimplente, tende a ser valorizado em algumas situações. Veja-se, por exemplo, a Lei do Cadastro Positivo, Lei n. 12.414/2011, de 09 de Junho de 2011, que disciplina a formação e consulta a bancos de dados com informações de adimplemento, de pessoas naturais ou de pessoas jurídicas, para a formação de histórico de crédito. Com este banco de dados, ao qual nós temos a faculdade de participar, as instituições que operam com crédito terão parâmetros sólidos para destinar recursos àqueles que apresentam histórico favorável.

Por outro lado, a inadimplência pode gerar a inclusão do nome do devedor em órgãos restritivos de crédito, como o SPC e SERASA, o que pode comprometer o potencial de crédito de uma pessoa no mercado.

É claro que a negativação indevida do devedor, ou seja, a sua inclusão no cadastro restritivo de crédito de maneira irregular é uma violação da honra objetiva da pessoa, que pode pedir a compensação pelos danos morais resultantes.

A parte só não poderá pedir compensação por dano moral se porventura já teve seu nome incluído nos cadastros restritivos de maneira devida, conforme dispõe a Súmula 385 do STJ: “Da anotação irregular em cadastro de proteção ao crédito, não cabe indenização por dano moral, quando preexistente legítima inscrição, ressalvado o direito ao cancelamento.”

Ou seja, se alguém foi vítima de inclusão indevida nos cadastros restritivos de crédito, só poderá pedir a compensação pelos danos morais se não teve um apontamento legítimo anterior. Neste caso, só cabe o pedido de cancelamento da inscrição.

A Súmula 385 do STJ é, para este autor, um exemplo de que o princípio da obrigatoriedade está muito vivo entre nós, pois ela cria uma pecha de mal pagador a alguém que um dia teve a infelicidade de figurar no cadastro do SPC ou SERASA.

O que é inconcebível, nos tempos atuais, é imaginar que o contratante estará obrigado a cumprir o ajuste celebrado a qualquer custo, pois o princípio do equilíbrio econômico financeiro do contrato permite a sua revisão ou até mesmo a extinção do negócio diante de uma lesão (Art. 157) ou onerosidade excessiva (Art. 476).

Destarte, a proteção especial conferida pelo Código de Defesa do Consumidor e o tratamento dispensado ao contrato de adesão representam importantes limitações ao princípio da obrigatoriedade.
 
2.2.  O Princípio da Obrigatoriedade e O Dirigismo Contratual

O princípio da obrigatoriedade impedia qualquer tipo de revisão do conteúdo do contrato, pois  ele surgiu no contexto das revoluções do século XVIII, que preconizava o total afastamento do Estado das relações particulares. O contrato como regra era imodificável.

No entanto, após a 1ª Guerra Mundial (1914-1918) ficou demonstrado que, dependendo das circunstâncias políticas, sociais e econômicas (resultantes de um contexto de guerra, por exemplo), poderiam afetar as condições de um dos contratantes, a ponto de permitir a revisão do contrato.

A partir de então o princípio da obrigatoriedade sofreu grande impacto, pois a legislação de diversos países começou a prever mecanismos de revisão do contrato. Portanto, assim como o princípio da autonomia privada está condicionado pela função social, o princípio da obrigatoriedade está pelo princípio do Equilíbrio Econômico e Financeiro, que trataremos adiante.

Desde então iniciou-se uma busca incessante para que o interesse individual ceda ante o interesse social. Estado deixou a sua postura de inércia e de indiferença para com as desigualdades contratuais e passou a interferir mais ostensivamente na economia, o que deu margem ao surgimento do dirigismo contratual.  

3.       Princípio da Relatividade dos Contratos

3.1.  Conceito

Pelo princípio da relatividade, os efeitos de um contrato se restringem somente às partes vinculadas na obrigação, e não prejudicam nem beneficiam terceiros estranhos a ele. Em outros termos, “os contratos só geram efeitos entre as próprias partes contratantes, razão porque se pode afirmar que a sua oponibilidade não é absoluta ou erga omnes, mas, tão somente, relativa.” (GAGLIANO; FILHO, 2012, p. 78)

O princípio da relatividade pode ser extraído da expressão latina: Res inter alios acta aliis nec nocet nec prodest. [Jur] O negócio que é feito entre uns, nem prejudica nem beneficia a outros.[1]

Isso acontece porque o contrato gera um direito pessoal, obrigacional ou de crédito, ao seu titular, que pode exigir do devedor o cumprimento de uma prestação: obrigação de dar, fazer ou não fazer alguma coisa. Diversamente, um direito real, como a propriedade, uma hipoteca, o usufruto, tem eficácia erga omnes, pois se impõe a todas as pessoas, sem distinção.

É certo, porém, que o princípio da relatividade dos contratos, assim como os demais princípios clássicos estudados, também sofre intensa mitigação nos tempos atuais. Isso porque ele se submete a inúmeras exceções. Vejamos cada uma das exceções separadamente:

3.2. Exceções ao Princípio da Relatividade

3.2.1. Responsabilidade dos Herdeiros por Dívidas do Contratante

Excepcionalmente, a dívida de um contratante pode atingir terceiros, o que ocorre nos débitos do sucessor a título universal. Salienta-se, porém, que o herdeiro não responde por encargos superiores ao quinhão recebido a título de herança, conforme o art. 1.792 do Código Civil:

Art. 1.792. O herdeiro não responde por encargos superiores às forças da herança; incumbe-lhe, porém, a prova do excesso, salvo se houver inventário que a escuse, demostrando o valor dos bens herdados.

3.2.2. Estipulação Em Favor de Terceiro

a) Conceito e Previsão Legal

A estipulação em favor de terceiro é um contrato pelo qual uma pessoa (estipulante) convenciona com outra (promitente) uma obrigação em que a prestação será cumprida em favor de outra pessoa (o beneficiário). (PEREIRA, 2014)

Como se pode notar, a peculiaridade da estipulação em favor de terceiros é que o vínculo obrigacional não se prende exatamente entre dois pólos (credor e devedor). Os efeitos vão atingir um terceiro que, embora não tenha participado da avença, acaba por ser favorecido com os efeitos do contrato.

As características principais, portanto, da estipulação em favor de terceiro são a de que ela é uma exceção ao princípio da relatividade, pois o negócio firmado entre duas partes termina por beneficiar um terceiro. Além disso, a estipulação deve ser necessariamente gratuita. O estipulante e o promitente não podem convencionar uma contraprestação ao estipulante, em troca da vantagem oferecida.

b) Exemplos

O melhor e mais citado exemplo de estipulação de terceiro é o seguro de vida. Nesta modalidade de seguro, o estipulante indica um beneficiário para receber o valor do capital contratado junto à determinada seguradora. A lógica é a mesma. Três partes, sendo que um deles é o beneficiário. O segurado é o estipulante, a seguradora a promitente e o beneficiário é o terceiro.

Mas a estipulação de terceiro, apesar de se amoldar perfeitamente na estrutura do seguro de vida, a ele não se resume. Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald dão exemplos de outras negociações que poderiam ser concretizadas pelo instituto em exame.

Volvendo os olhares para a pirâmide acima, suponha que A é credor de B e devedor de C ao mesmo tempo. Seria contraproducente a celebração de dois pagamentos, uma de B para A e outro deste para C. Nesta hipótese, B e A poderiam estipular em favor de A. (CHAVES; ROSENVALD, 2011)

Outros exemplos são apresentados por Tito Fulgêncio na obra atualizada de Caio Mario (2014):

1 – Constituição de renda em que o promitente recebe do estipulante um capital, e obriga-se a pagar ao beneficiário uma renda por tempo certo ou pela vida toda.
2 – Seguro, em várias de suas modalidades (de vida, contra acidentes pessoais, contra acidentes do trabalho, dotal), em que o segurado (estipulante) contrata com o segurador (promitente) pagar ao beneficiário (terceiro) o valor ajustado, em caso de sinistro.
3 – Doações modais, quando o donatário se obriga para com o doador a executar o encargo a benefício de pessoa determinada ou indeterminada.
4 – Contratos com o Poder Público, concessão de serviço público etc. em que o contratante (promitente) convenciona com a Administração (estipulante) a prestação de serviços aos usuários (terceiros indeterminados).

c) Considerações Sobre o Beneficiário


  • Capacidade civil

Como o beneficiário não é parte da relação, mas apenas recebe seus efeitos, não é necessário que tenha capacidade civil para ser indicado como beneficiário. Ele eventualmente pode intervir no momento da eficácia do negócio para exigir o direito de crédito a que faz jus, momento em que deve estar representado ou assistindo, conforme o caso.

  • Indeterminação do Beneficiário


A indeterminação do beneficiário também não é óbice para a estipulação, desde que no momento do cumprimento da promessa seja possível identificá-lo. Assim, posso estipular em favor de um filho que ainda não nasceu ou de uma pessoa jurídica (fundação, v.g) que está para ser constituída.

  • Legitimação

Questão interessante é a de saber se o segurado pode indicar a companheira como beneficiária. A teor do disposto no art. 793 do Código Civil, esta indicação só é válida se o segurado, ao tempo da estipulação, já estava separado judicialmente ou divorciado, ou separado de fato.

Art. 793. É válida a instituição do companheiro como beneficiário, se ao tempo do contrato o segurado era separado judicialmente, ou já se encontrava separado de fato.

O Código definiu essas condições para dar validade à doação, o que significa que a lei não considera válida a estipulação feita à companheira, na constância do casamento, pois o direito não enxerga a relação paralela como união estável, mas sim como concubinato.

Para Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald (2011), a pessoa impedida de receber doação de outra, também não pode receber uma estipulação desta. Assim, como o art. 550 veda a doação do cônjuge adúltero ao seu cúmplice e o art. 793 só considera válida a indicação da companheira por pessoa separada judicialmente ou de fato, não se permite a estipulação, em tais hipóteses, por falta de legitimação do beneficiário.

d) Legitimidade para Exigir o Cumprimento da Prestação

  • Estipulante

O art. 436 do Código Civil atribui legitimidade ao estipulante para exigir o cumprimento da obrigação em favor do beneficiário.

Art. 436. O que estipula em favor de terceiro pode exigir o cumprimento da obrigação.

Para ilustrar, suponha que um pai tenha celebrado um plano de saúde em benefício de seus familiares. Em caso de recusa indevida da operadora de custear procedimentos, é claro que o pai poderá ingressar em juízo para forçar o cumprimento da obrigação. Há um precedente do TJMG que tratou exatamente disso, vejamos:

AGRAVO DE INSTRUMENTO - PLANO DE SAÚDE - NEGATIVA NA PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS - EXIGÊNCIA DE PAGAMENTO DO CUSTO OPERACIONAL - TRATAMENTO DE QUIMIOTERAPIA - TUTELA ANTECIPADA DEFERIDA URGÊNCIA - ILEGITIMIDADE ATIVA - REJEITAR - TITULAR DO PLANO DE SAÚDE - PARTE LEGÍTIMA - ART. 436, ""CAPUT"", DO CC - PRESENÇA DOS REQUISITOS DO ART. 273, DO CPC. - O prejudicado é o Autor, titular do plano e que custeia o pagamento das mensalidades, ostentando legitimidade ordinária para figurar no pólo ativo da demanda, decorrendo, assim, pertinência subjetiva do demandante para discutir cláusulas e exigir o cumprimento de obrigações contratuais, com base no art. 436, ""caput"", do CC. - Os documentos trazem que a paciente deve ser atendida com urgência, justificada na intenção curativa do tratamento, estando presentes os requisitos autorizadores da tutela antecipada do art. 273, do CPC. - Lado outro, a cooperativa não trouxe elementos que ilidissem a necessidade de se antecipar a tutela pretendida pela parte Autora e sequer alegou ou demonstrou risco de lesão grave e de reparação problemática. (TJMG, Agravo de Instrumento n. 1.0027.09.1925654-7/001, Des. Mota e Silva, 18º Câmara Cível, DJe 04/08/2009)

O caso envolveu situação em que a usuária de um plano de saúde se submeteu a intervenção cirúrgica para tratamento de câncer, com a retirada de todo o seu estômago (gastrectomia total). No entanto, como a moléstia não foi extirpada, houve recomendação médica para que a paciente se submetesse ao tratamento quimioterápico.

No entanto, a operadora do plano recusou o custeio do procedimento, alegando que não tinha cobertura contratual para tanto. Daí que o marido da usuária enferma ajuizou ação para obrigar o plano a custear o tratamento. O Juiz de Direito deferiu liminarmente o pagamento do tratamento, mas a operadora interpôs Agravo de Instrumento, alegando, dentre outras matérias, que o autor/agravado não tinha legitimidade ativa, pois estaria pleiteando direito alheio em nome próprio, o que não procede, porém, em vista do disposto no art. 436 do Código Civil.   
 
  • O Beneficiário

O beneficiário também tem legitimidade para exigir a satisfação da vantagem que lhe foi prometida, como se infere do parágrafo único do art. 436, embora o artigo seguinte (art. 437), com redação confusa, deixe a entender que esta legitimidade tenha de resultar de cláusula expressa no contrato. Ou seja, o direito de reclamar a execução do contrato, pela redação do art. 437, deve estar expresso no contrato “[...] se deixar o direito de reclamar-lhe a execução [...]”.

Acredito, porém, que não se deve interpretar literalmente o disposto no art. 437, pois o direito do terceiro de exigir o cumprimento da obrigação decorre da vantagem que lhe foi atribuída, de forma que a iniciativa dele para reclamar a execução da obrigação está implícita, salvo cláusula expressa em sentido contrário.

Para não ficar apenas com o contrato de seguro em mente, pensemos numa doação com encargo, pela qual o donatário se obriga a pagar mensalmente alimentos em benefício de terceiros. No caso, o art. 553 do Código Civil dispõe que o donatário, no caso, promitente, fica obrigado a cumprir o encargo, vejamos:

Art. 553. O donatário é obrigado a cumprir os encargos da doação, caso forem a benefício do doador, de terceiro, ou do interesse geral.

Parágrafo único. Se desta última espécie for o encargo, o Ministério Público poderá exigir sua execução, depois da morte do doador, se este não tiver feito.

A questão que fica é a de saber se o terceiro, no exemplo acima, tem legitimidade para exigir os alimentos em caso de inadimplemento da obrigação. A pergunta não é ingênua, porque, pelo que se depreende do art. 553 e seu parágrafo, a ação para exigir o cumprimento do encargo é personalíssima. O próprio Ministério Público só tem legitimidade para exigir a execução depois da morte do doador (estipulante), e isso se ele não tiver exigido em vida.

No entanto, se o encargo for estipulado em benefício do próprio doador ou de terceiros, o respectivo beneficiário pode exigir seu cumprimento (GAGLIANO; FILHO, 2012, p. 174). Com este mesmo entendimento, o autor Silvio de Salvo Venosa (VENOSA, 2012, p. 113)

e)  Exoneração/Remissão do Promitente

Ainda com base no art. 436, p. único e 437, do CC, o estipulante só poderá exonerar ou perdoar a dívida do promitente se houver cláusula contratual expressa que retire do terceiro a faculdade de reclamar o cumprimento da obrigação do contrato. Afinal, o terceiro é o mais interessado no cumprimento da obrigação, já que ele que se aproveitará das vantagens decorrentes. 

Apesar do texto da lei nos conduzir a tal conclusão, Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald (2011) afirmam que a possibilidade ou não de exoneração do devedor, o que seria tecnicamente uma resilição unilateral de contrato, depende se houve ou não a aceitação do terceiro. Assim, antes da aceitação, é possível a exoneração, mas após o consentimento do terceiro, isso não seria possível.

Ouso divergir, no entanto, pois o que é decisivo, nos termos da lei, é se existe ou não cláusula que permite ao terceiro reclamar a execução. Na falta desta, o estipulante não poderá revogar a promessa. Com este mesmo entendimento, o autor Carlos Roberto Gonçalves:

“Se se estipular que o beneficiário pode reclamar a execução do contrato, o estipulante perde o direito de exonerar o promitente (CC, art. 437). Destarte, a estipulação será irrevogável. A ausência de previsão desse direito sujeita o terceiro à vontade do estipulante, que poderá desobrigar o devedor [...]” (2012, p. 124)

f) Substituição do Terceiro/Beneficiário

O contrato de estipulação em favor de terceiro pode apresentar a chamada cláusula de reserva de substituição, pela qual o estipulante pode, independentemente da anuência do terceiro ou do promitente, substituir o beneficiário, o que pode ser feito por ato entre vivos ou causa mortis. (por escritura, instrumento particular ou testamento).

No seguro de vida basta comunicação escrita do segurado ao segurador, sem maiores formalidades. Este ato de substituição é chamado de “endosso”. Uma empresa que tem apólice de seguro de acidentes pessoais para seus funcionários encaminha periodicamente uma relação para que o segurador saiba quem foi admitido ou demitido.

É importante destacar que o direito de substituição do terceiro pode ser exercido até mesmo depois da aceitação do benefício, pois “o beneficiário adquiriu o direito subjetivo e a respectiva pretensão, mas se encontra em situação passiva de sujeição, haja vista a opção contratual do estipulante de unilateralmente submetê-lo à privação do direito.” (CHAVES; ROSENVALD, 2011, p. 492)

g) Efeitos da Estipulação em Favor de Terceiro

       Para melhor compreensão da estipulação em favor de terceiro como exceção ao princípio da relatividade, é interessante mencionar a ilustração proposta por Flávio Tartuce (2014, p. 116), para representar a eficácia exógena do instituto.De acordo com o citado autor, os efeitos da estipulação em favor de terceiros são exógenos, porque são produzidos de “dentro para fora do contrato”

3.2.3.  Promessa de Fato de Terceiro

a)  Conceito

De forma similar à estipulação em favor de terceiro, no também chamado “contrato por outrem”, há uma relação jurídica “entre duas pessoas capazes e aptas a criar direitos e obrigações, as quais ajustam um negócio jurídico tendo por objeto a prestação de um fato a ser cumprido por outra pessoa, não participante dele” (PEREIRA, 2014)

b) As Duas Fases na Promessa de Fato de Terceiro

De acordo com Caio Mario (2014), a promessa de fato de terceiro é constituída por duas fases: na primeira delas (fase de formação), duas pessoas celebram um determinado contrato, sendo que uma das partes indica um terceiro que, em tese, cumprirá a obrigação em seu lugar.  Já na segunda etapa (fase de execução), surge um terceiro que manifesta sua anuência e executa a obrigação, conforme foi estipulado na primeira fase.

O detalhe é que o devedor não se desvincula da obrigação simplesmente por ter indicado um terceiro. Muito pelo contrário, se o terceiro não executar a obrigação, quem responde é o devedor originário, na forma do art. 439, caput:

Art. 439. Aquele que tiver prometido fato de terceiro responderá por perdas e danos, quando este o não executar.

Assim, na fase de execução podem ocorrer duas situações distintas: a) o terceiro confirma a obrigação e executa o contrato, o que acarreta a desvinculação do promitente da obrigação ou b) o terceiro não confirma a obrigação. Nesta hipótese, nenhuma obrigação surge para o terceiro, mas apenas para o devedor originário.

A dinâmica da promessa de fato de terceiro pode ser visualizada da seguinte forma:

1ª Fase (Formação)
2ª Fase (Execução)

Duas partes celebram um contrato, sendo que uma delas indica um terceiro que assumirá a obrigação:

Exemplo: A promete a B que granjeará o assentimento do artista T (Tim Maia), com vistas à realização do show empresariado por B.



1ª Possibilidade
1ª Possibilidade

O Terceiro (TIM MAIA) não comparece e o promitente responde por perdas e danos.

Art. 439. Aquele que tiver prometido fato de terceiro responderá por perdas e danos, quando este o não executar.



O Terceiro (Tim Maia) confirma a obrigação e executa o fato prometido. Realiza o Show. Neste hipótese, o promitente se desvincula e não responde se porventura o terceiro não vier a cumprir o contrato.

Art. 440. Nenhuma obrigação haverá para quem se comprometer por outrem, se este, depois de se ter obrigado, faltar à prestação.

Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald (2011, p. 496) não incluem a promessa de fato de terceiro como exceção ao princípio da relatividade, pois o devedor apenas assume a obrigação de fazer, consistente na indicação de um terceiro que cumprirá a obrigação em seu lugar. Este terceiro, enquanto não aceitar a indicação, não tem obrigação alguma. E se porventura o terceiro concordar e executar o contrato, não fará porque o contrato inicial o vinculou de alguma forma.

Com o todo respeito aos notáveis juristas, discordo deste posicionamento porque a concordância do terceiro em cumprir a obrigação acaba por desvincular o promitente de qualquer responsabilidade, como deixa claro o art. 440 do Código Civil. O que ocorre, portanto, na feliz representação gráfica feita por Flávio Tartuce, é que os efeitos da promessa de fato de terceiros são endógenos, pois partem “de fora para dentro do contrato” (2010, p. 118)

c) Responsabilidade do Promitente
  • Obrigação de Resultado

Ao fazer a promessa, o promitente acaba assumindo uma obrigação de resultado, pois por mais diligente que tenha sido na tentativa de buscar a aceitação do terceiro, ele termina por responder por perdas e danos. Neste caso, sua culpa é presumida, cabendo-lhe o ônus de apresentar alguma circunstância que possa excluir sua responsabilidade, como caso fortuito ou força maior.

      d) Responsabilidade do Promitente quando o Terceiro Indicado é o seu Cônjuge

A regra é a de que o promitente sempre responde pela não execução da promessa, mas o parágrafo único do art. 439, disposição inovadora do CC/02, estabelece uma exceção, pois se o terceiro indicado for cônjuge do promitente, nenhuma responsabilidade haverá para este se, pelo regime de bens do casal, a indenização venha a recair sobre os bens do cônjuge.

Art. 439. Aquele que tiver prometido fato de terceiro responderá por perdas e danos, quando este o não executar.

Parágrafo único. Tal responsabilidade não existirá se o terceiro for o cônjuge do promitente, dependendo da sua anuência o ato a ser praticado, e desde que, pelo regime do casamento, a indenização, de algum modo, venha a recair sobre os seus bens.

Com efeito, fica claro que a promitente fica beneficiado indiretamente, já que o objetivo da lei é o de preservar o patrimônio que não participou da fase de formação do contrato. Na verdade o escopo do legislador é o de “acautelar um cônjuge contra os arroubos de outro” (CHAVES; ROSENVALD, 2011. p. 498)

O objetivo foi exposto na Exposição de Motivos Complementar do Código Civil, no qual o jurista responsável pela sua introdução, Agostinho Alvim, informou que a regra em tela:

“Visa a impedir que o cônjuge, geralmente a mulher, por ter usado do seu direito de veto, venha a sofrer as conseqüências da ação de indenização que mais tarde se mova contra o cônjuge promitente. O pressuposto é que, pelo regime de casamento, a ação indenizatória venha, de algum modo, a prejudicar o cônjuge que nada prometera”. (Apud GONÇALVES, 2010, p. 128)

A título de ilustração, suponha a hipótese em que um cônjuge queira vender um imóvel pertencente a ele e ao seu consorte, e celebre uma promessa de fato de terceiro, dizendo ao interessado na aquisição que o seu marido ou esposa firmará a outorga conjugal. O que o parágrafo único em exame quer dizer é que o imóvel de propriedade dos cônjuges não poderá ser penhorado para satisfazer as perdas e danos do promissário.

E faz sentido a regra, pois “se este raciocínio não fosse adotado, o outro cônjuge (terceiro) culminaria por responder pelo inadimplemento mesmo que não tenha consentido com o negócio jurídico do cônjuge promitente (CHAVES; ROSENVALD, 2011. p. 498)

Portanto, na situação em exame não é correto afirmar que o promitente não responde em nenhuma hipótese pela falta da outorga conjugal. Ele só não responde se a indenização recair em bens que, pelo regime de casamento ou de união estável aplicado, são de propriedade do outro cônjuge.

e) Exemplos de Promessa de Fato de Terceiro na Jurisprudência

O primeiro exemplo é de um caso julgado pelo TJSP, que tem a seguinte ementa:

Ementa: OBRIGAÇÃO DE FAZER - CONTRATO DE PERMUTA DE VEÍCULOS - DOCUMENTAÇÃO - TRANSFERÊNCIA - DETRAN - VEÍCULO EM NOME DE TERCEIRO - ILEGITIMIDADE DE PARTE - INOCORRENCIA - PROMESSA DE FATO DE TERCEIRO INERENTE AO NEGÓCIO - VALIDADE - EXEGESE DO ART. 439, DO CÓDIGO CIVIL 1. Ocorrida permuta de veículos, com obrigação pessoal de transferir a documentação para o nome do adquirente, é legítima a parte que se obrigou a fazê-lo, ainda que para tal transferência seja necessário o concurso de terceiro, em cujo nome ainda se encontra a documentação do veículo e o registro na repartição de trânsito. 2. É válida a obrigação onde se assumiu fato de terceiro, consistente em obter a transferência para o nome do adquirente da documentação do veículo que se encontra em nome de terceiro, nos termos do art 439, do Código Civil (TJSP, Apelação Cíveil n. 001.18.204000-7, 31ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Fábio Rogério Bojo Pellegrino, DJ 10/07/2008)

Neste caso, um dos permutantes obrigou-se a providenciar a documentação necessária à transferência do veículo junto ao Detran, pois o veículo alienado estava em nome de terceiros. Como o permutante não cumpriu a promessa, o outro promoveu ação para condená-lo à obrigação de obter a assinatura do terceiro e regularizar a documentação necessária à transferência do veículo no órgão de trânsito responsável.

O caso é excelente exemplo da aplicação do art. 439, caput, do Código Civil.

Outro exemplo excelente é o que envolveu conflito entre a CBF, o “União dos Grandes Clubes de Futebol Brasileiro - Clube dos Treze”, a Globo e alguns clubes de futebol brasileiros. O acórdão do STJ tem a seguinte ementa, da qual já é possível entender um pouco do caso concreto:

“[...] 1. Válido o contrato celebrado entre duas pessoas capazes e aptas a criar direitos e obrigações, que ajustam um negócio jurídico tendo por objeto a prestação de um fato por terceiro. 2. Descumprida a obrigação de obter a anuência do terceiro ao contrato, responde o promitente inadimplente por perdas e danos, a teor do que dispunha o art. 929 do Código Civil de 1916, reproduzido
pelo caput do art. 439 do Código Civil em vigor, "aquele que tiver prometido fato de terceiro responderá por perdas e danos, quando este o não executar". 3. In casu, não sendo a CBF titular do direito de transmissão dos jogos, reservado exclusivamente às entidades de prática desportiva, segundo o art. 24 da Lei 8.672/93, cumpria a ela obter dos clubes de futebol, a anuência ao contrato. O inadimplemento dessa obrigação, representada pela notificação endereçada à TVA, comunicando que não conseguira a anuência dos clubes, enseja a resolução (extinção) do contrato e a responsabilização por perdas e danos. 4. As considerações expendidas nas razões do especial acerca do instituto da lesão não podem ser apreciadas por esta Corte Superior, sob duplo fundamento: ausência de prequestionamento (enunciados sumulares n.ºs 282 e 356/STF) e ausência de indicação do dispositivo legal que teria sido violado (Súmula 284/STF). 5. Segundo a jurisprudência do STJ, a redução da multa contratual, com base no art. 924 do Código Civil de 1916, somente pode ser concedida nas hipóteses de cumprimento parcial da prestação ou,
ainda, quando o valor da multa exceder o valor da obrigação principal, circunstâncias inexistentes no caso concreto. 6. Tendo a Corte de origem concluído no sentido do descumprimento total do contrato, à luz da prova dos autos, inviável a redução da cláusula penal, por força da Súmula 7/STJ. 7. Na promessa de fato de terceiro, o terceiro é totalmente estranho à relação jurídica, não estando vinculado ao contrato, senão após o cumprimento da obrigação, que incumbia ao promitente. [...]” (STJ, REsp 249.008-RJ, T3 Terceira Turma, Rel. Min. Vasco Della Giustina, Desembargador convocado do TJRS, DJe 16/11/2010, RSTJ vol. 221 p. 500)

Como se pode notar da leitura do acórdão, o caso é complexo e envolveu contrato de cessão de direitos de transmissão de temporada de jogos. Na espécie, prevaleceu o entendimento de que o contrato da CBF com a TVA Sistema de Televisão S/A era uma promessa de fato de terceiro, cabendo à CBF obter a anuência dos clubes para a execução do contrato.

3.2.4. Contrato Com Pessoa a Declarar (art. 467 a 471)

a) Considerações Iniciais e conceito

A celebração de contratos na economia muitas vezes obedece a uma lógica especulativa, na qual um agente econômico compra determinado bem por um preço melhor, e depois o revende a terceiros, computando uma margem de lucro. Inclusive, ainda muito se diz por aí que a aquisição de imóveis continua a ser um excelente investimento.

No entanto, se a pessoa quer extrair o máximo de proveito econômico neste negócio, ela não precisa comprar o imóvel, e desembolsar todos os gastos com escritura e impostos incidentes na operação, para depois revender o bem a terceiros, pois isso gera nova incidência desses encargos.

Sendo assim, para contornar essa situação, é possível a estipulação de uma cláusula pela qual “um dos contratantes pode reservar-se o direito de indicar outra pessoa para, em seu lugar, adquirir os direitos e assumir as obrigações dele decorrentes (art. 467)” (GONÇALVES, 2012, p. 170)

Segundo Caio Mario, foi o Código Civil italiano que tipificou este tipo de avença nos artigos 1.401 e seguintes. (PEREIRA, 2014), mas também há previsão no Código português, nos artigos 452º e 456º  com o nome “contrato para pessoa a nomear” (GONÇALVES, 2012, p. 170)

Anote-se, a título de curiosidade, que a cláusulaa surgiu na idade média em meio às vendas judiciais realizadas. Como se sabe, nas alienações judiciais surgem diversos interessados na aquisição do bem, denominados licitantes. O bem é arrematado pelo licitante que oferece o melhor preço. Na época, alguns nobres e pessoas de alta classe solicitavam que pessoas desconhecidas oferecessem o lance e, no momento do pagamento do preço, pudessem indicar outra pessoa que assumiria o seu lugar.

A cláusula nasceu, assim, como uma tática negocial para se evitar a supervalorização do preço do bem arrematado. Tais informações constam da monografia apresentada por Luiz Roldão de Freitas Gomes (apud GONÇALVES, 2012).

Nela são identificadas três personagens:

a)       O promitente: aquele que assume o compromisso de reconhecer o amicus ou eligendo;
b)       O estipulante: que pactua em seu favor a cláusula de substituição;
c)       O electus (a pessoa escolhida) (GONÇALVES, 2012)

Em suma, “pela cláusula electio amici ou pro amico electo (para pessoa a nomear) uma das partes originárias do negócio jurídico (estipulante) pactua a sua eventual substituição, reservando para si a futura indicação do nome, comprometendo-se a outra parte (promitente) a reconhecer o amicus (indicado) como parceiro contratual.” (CHAVES; ROSENVALD, 2011, p. 500)

b) Natureza Jurídica

O contrato com pessoa a declarar é um contrato acessório, pois ele só existe diante de um contrato principal, como, por exemplo, a promessa de compra e venda.

A promessa de compra e venda é um contrato cujo objeto é a assinatura de um contrato futuro. Por exemplo, se A e B celebram promessa de compra e venda, pela qual B se obriga a adquirir o imóvel de A, tem-se A como promitente vendedor e B como promitente comprador. Salvo previsão de cláusula de arrependimento, os contratantes são obrigados a firmar o contrato definitivo – promessa de compra e venda.

Neste caso, se na promessa de compra e venda estiver prevista a cláusula de pessoa a declarar, B poderá, no momento da assinatura da compra e venda, indicar C, por exemplo, para assumir os direitos e obrigações decorrentes.

Isso evita a realização de dois contratos de compra e venda, que somente beneficiaria os cartórios com custas e emolumentos, além do município, que recolheria o ITBI (Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis) nas duas operações.

Em abono às minhas palavras, cito o magistério de Carlos Roberto Gonçalves:

“A referida cláusula é denominada pro amico eligendo ou sibi aut amico vel eligendo. Tem sido utilizada para evitar despesas com nova alieanção, nos casos de bens adquiridos com o propósito de revenda, com a simples intermediação do que figura como adquirente.” (GONÇALVES, 2012, p. 170)

Ainda de acordo com o mencionado autor, esta cláusula não é exclusiva da promessa de compra e venda, podendo ser utilizada em outros contratos, com exceção daqueles personalíssimos, cujo cumprimento da obrigação deve ser feita por alguém em específico (2012). De fato, não há conceber uma cláusula desta natureza em contrato de doação.

Em complemento, o contrato com pessoa a declarar, além de acessório, é um contrato condicional, pois está subordinado a uma condição resolutiva. Aliás, a escolha válida da pessoa implementa a condição resolutiva do contrato acessório, desvinculando o estipulante, ao mesmo tempo em que deflagra os efeitos do contrato principal em relação ao substituto, funcionando, neste aspecto, como uma condição suspensiva em relação a ele.

Mas as aplicações práticas do contrato com pessoa a declarar não se resumem à promessa de compra e venda. Uma pessoa famosa e abonada, como Luciano Huck, pode valer-se de uma cláusula como essa para evitar a fixação do preço de um bem nas alturas.

Da mesma forma, uma agência de automóveis que deseja retransmitir o carro usado que adquiriu do particular pode valer-se da cláusula pro amico eligendo (CHAVES; ROSENVALD, 2011, p. 501)

c) Figuras Afins (Distinções)

O contrato com pessoa a declarar tem semelhanças, mas não pode ser confundido com outras figuras jurídicas afins. Vejamos as diferenças:

  • Contrato Com Pessoa a Declarar e Estipulação em Favor de Terceiro 

O ponto em comum entre os dois institutos é que ambos constituem exceção ao princípio da relatividade dos efeitos do contrato. O contrato, que deveria produzir efeitos somente entre os contratantes, repercute na esfera jurídica de terceiros estranhos à relação contratual originária.

Por outro lado, a diferença é que na estipulação em favor de terceiro, o estipulante e o promitente permanecem vinculados ao contrato durante toda a sua fase de cumprimento, enquanto o terceiro beneficiário, apesar de ter a possibilidade de exigir o cumprimento da obrigação, é figura alheia ao contrato, não o integrando, mesmo após a aceitação.

Já no contrato com pessoa a declarar, o terceiro ocupa a posição do estipulante, com efeitos retroativos (ex nunc), como tivesse feito parte do contrato desde a sua conclusão. Portanto, o estipulante se desvincula e uma nova pessoa assume sua posição contratual e, consequentemente, seus direitos e obrigações.

  • Contrato Com Pessoa a Declarar e Cessão de Contrato 

O ponto de convergência entre esses dois institutos está no fato de que, em ambos os casos, opera-se uma substituição de um contratante por um terceiro, que assume a posição contratual, que ocupado pelo outro.

Em um contrato de locação, por exemplo, pode estar prevista a cláusula que autoriza a cessão do contrato. Nesta hipótese, o locatário poderá ceder a sua posição contratual a um terceiro (cessionário), que substituirá o antigo locatário e assumirá todos os direitos e obrigações decorrentes.

No contrato com pessoa a declarar ocorre basicamente a mesma coisa. Algum investidor celebra um contrato de promessa de compra e venda de um imóvel e paga um preço X, em prestações. Ao final das parcelas, já com o imóvel valorizado, o promitente comprador declara que o contrato definitivo de compra e venda será firmado por outra pessoa que, é claro, já pagou o preço que o investidor queria.

Em ambos os casos houve a substituição, mas a diferença é que no contrato com pessoa a declarar os efeitos são ex nunc. É como se o comprador do imóvel tivesse participado da promessa de compra e venda, desde o momento inicial. Já na cessão de contrato, o cessionário também passa a ocupar o lugar do cedente, mas com efeitos ex tunc.

d) Prazo, Forma e Efeitos da Indicação  

Nos termos dos artigos 468, caput e seu parágrafo único, a indicação do substituto deve ser comunicada à outra parte no prazo de cinco dias, se outro não tiver sido estipulado. A forma da comunicação é a mesma que se reveste o contrato principal. Ou seja, se o contrato principal foi celebrado por instrumento público, a comunicação também deverá seguir essa forma.

A eficácia da indicação é retroativa (ex nunc), pois a pessoa nomeada assume a posição contratual do estipulante desde a origem do contrato. Neste sentido, dispõe o art. 469:

Art. 469. A pessoa, nomeada de conformidade com os artigos antecedentes, adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes do contrato, a partir do momento em que este foi celebrado.

e) Frustração da Cláusula pro amico eligendo

A frustração do contrato com pessoa a declarar ocorre quando, por qualquer motivo, não houver indicação da pessoa no prazo ajustado ou no previsto em lei, quando a pessoa nomeada se recusar a aceitá-la, ou ainda, quando a pessoa indicada era insolvente, e a outra pessoa o desconhecia no momento da indicação. (art. 470, I e II)

Outra hipótese de frustração do contrato ocorre se o nomeado for incapaz ou insolvente, ao tempo da nomeação, nos termos do art. 471 do CC/02.

Em tais situações, a condição resolutiva que poderia desvincular o estipulante do contrato não se implementou. Sendo assim, o contrato principal permanece válido e eficaz em relação aos contratantes originários. (art. 470, caput)


[1] Disponível em: http://www.hkocher.info/minha_pagina/dicionario/r03.htm Acesso em 26/01/2015