domingo, 26 de abril de 2015

EVICÇÃO

EVICÇÃO

1.       Conceito e Fundamento

Consiste a evicção na perda, pelo adquirente (evicto), da posse ou propriedade da coisa transferida, por força de uma sentença judicial ou ato administrativo que reconheceu o direito anterior de terceiro (evictor) sobre o bem alienado. Ou seja, é a perda da coisa diante de uma decisão judicial ou de um ato administrativo que a atribui a um terceiro (TARTUCE, 2013, p. 210)

Etimologicamente, evicção provém do latim evincere, que significa ser vencido num pleito relativo a coisa adquirida de terceiro (GONÇALVES, 2012, p. 144). Em outros termos, consiste na perda parcial ou integral do bem, via de regra, em virtude de decisão judicial que atribua uso, posse ou propriedade a outrem em decorrência de motivo jurídico anterior ao contrato de aquisição.

A evicção é uma garantia para resguardar o adquirente de uma alienação a non domino. Funda-se, em última análise, no princípio geral que veda o enriquecimento sem causa (art. 884) do Código Civil. Afirma-se, por isso, que o adquirente é protegido no tocante à garantia da legitimidade jurídica do direito que lhe é transferido (FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 485)

O fundamento da evicção, assim como o vício redibitório, está no princípio da garantia, pois o alienante, além de garantir a fruição efetiva da coisa, também deve assegurar o direito do adquirente contra eventuais pretensões de terceiros. É dizer, em suma: nos vícios redibitórios, a garantia é contra defeitos ocultos, enquanto na evicção, a garantia é contra “defeitos do direito transmitido” (GONÇALVES, 2012, p. 142)

1.1.  Elementos subjetivos ou Pessoais da Evicção

No intuito de ilustrar a dinâmica da evicção, apresentaremos didaticamente quais são os envolvidos na situação, para que a terminologia empregada neste tópico possa ser assimilada facilmente pelo leitor. Assim, de acordo com Flávio Tartuce, são personagens da evicção (2013, p. 213)

a)       O alienante, aquele que transferiu a coisa viciada, de forma onerosa;
b)       O evicto (o adquirente ou evencido), aquele que perdeu a coisa adquirida;
c)       O evictor (ou evencente), aquele que teve a decisão judicial ou a apreensão administrativa a seu favor 

2.       Requisitos

2.1.  Aquisição onerosa de um bem

Semelhantemente aos vícios redibitórios, a garantia da evicção só se aplica aos contratos bilaterais, onerosos e comutativos, e não aos contratos unilaterais, gratuitos e aleatórios. Com efeito, a garantia da evicção só se aplica aos contratos onerosos, o que afasta a sua incidência das doações puras (art. 552).

Com efeito, a evicção se aplica a contratos como a compra e venda, permuta, parceria pecuária, transação (art. 845), sociedade (art. 1.005, do CC/02), transação, bem como na dação em pagamento e na partilha do acervo hereditário (GONÇALVES, 2012, p. 143), que são contratos onerosos em geral, assim entendidos aqueles em que ambas as partes “obtêm encargos e vantagens recíprocas” (FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 487)

Justamente por isso, a evicção não se aplica à contratos gratuitos como a doação pura (art. 552), já que a perda do bem não representaria um prejuízo propriamente dito, mas sim a perda de uma vantagem (FARIAS; ROSENVALD, 2015).

No entanto, o doador responde pela evicção numa doação com certa e determinada pessoa, salvo convenção em contrário. (art. 552, parte final). Por exemplo: ofereço um imóvel para uma mulher se ela se casar com meu filho. Se o contrato for omisso, a lei presume um dolo da minha parte, no sentido de que eu doei o bem somente para atrair o interesse do outro nubente.

Também em caráter excepcional, o doador responde pela evicção na doação onerosa (ou com encargo) até o limite da prestação imposta.

 Seja como for, uma diferença importante da evicção em relação ao regime legal dos vícios redibitórios, é que o legislador estabeleceu expressamente que a garantia da evicção prevalece até mesmo nas aquisições em hasta pública.

Art. 447. Nos contratos onerosos, o alienante responde pela evicção. Subsiste esta garantia ainda que a aquisição se tenha realizado em hasta pública.

2.2.  Aquisição em Hasta Pública

Quando ocorre, portanto, a perda de um bem que foi adquirido através de uma arrematação em hasta pública, deve-se aplicar analogicamente as regras da evicção para permitir que o arrematante/evicto possa se voltar contra o executado para pedir a devolução do preço pago, além das perdas e danos.

De acordo com Alexandre Freitas Câmara (apud TARTUCE, 2013, P. 212), a responsabilidade recai inicialmente contra o executado, mas o exequente, que também se beneficiou com o recebimento do valor pago, responde subsidiariamente. Em suma, nesta perspectiva a responsabilidade direta e imediata é do executado, enquanto a indireta ou subsidiária é do exequente.

Ainda para o citado processualista, não há de se cogitar de responsabilidade do Estado, nem solidariedade entre as partes, pois esta não se presume; decorre da lei ou da vontade das partes (art. 265 do CC).

2.3.  (a posterior) perda da POSSE ou da PROPRIEDADE  (determinada por) SENTENÇA ou ATO ADMINISTRATIVO

2.3.1.         Por Ato Judicial ou Administrativo

É corrente se afirmar que a evicção só ocorre diante da perda total ou parcial de um bem determinada por uma ordem judicial. No entanto, o Superior Tribunal de Justiça vem decidindo que a garantia também assiste ao adquirente/evicto que perdeu a posse do bem em razão de um ato administrativo, como sucede na hipótese da apreensão de um veículo roubado REsp. 259.726/RJ

João foi até uma agência de veículos e se interessou por um dos carros. O contrato foi formalizado, os valores foram pagos, operando-se a tradição. João chegou a consultar o prontuário do Detran para se resguardar, mas verificou que não tinha nenhum impedimento.

Certo dia, enquanto trafegava com seu novo veículo por uma avenida da cidade, foi surpreendido por uma Blitz. O Policial responsável pela operação consultou os registros e identificou que se tratava de um carro roubado. Dessa forma, determinou a apreensão do veículo adquirido por João.

Nesse caso, ainda não houve a perda da Propriedade, o que só poderia ser determinado por sentença em ação reivindicatória. Mesmo antes dessa sentença, o adquirente pode acionar o alienante para a restituição dos valores pagos.

2.3.2.         Trânsito em Julgado da Decisão

E mesmo quando a perda se dá em virtude de uma ordem judicial, não é necessário o trânsito em julgado da decisão para que o evicto possa exercer o seu direito contra o alienante. Isso acontece porque o Código Civil atual não repetiu a mesma regra constante do CC/1916 (art. 1.117, I), que exigia o trânsito em julgado da sentença para viabilizar o exercício do direito à evicção.

Hoje, portanto, não mais se exige o trânsito em julgado, pois, como é de conhecimento geral, se o evicto fosse esperar 5 a 10 anos para aguardar a decisão definitiva de um processo, estaria seriamente comprometido com a ineficácia do Poder Judiciário.


2. A evicção consiste na perda parcial ou integral do bem, via de regra, em virtude de decisão judicial que atribui o uso, a posse ou a propriedade a outrem, em decorrência de motivo jurídico anterior ao contrato de aquisição, podendo ocorrer, ainda, em virtude de ato administrativo do qual também decorra a privação da coisa. Precedentes. 3. A perda do bem por vício anterior ao negócio jurídico oneroso é fator determinante da evicção, tanto que há situações em que, a despeito da existência de decisão judicial ou de seu trânsito em julgado, os efeitos advindos da privação do bem se consumam, desde que, por óbvio, haja a efetiva ou iminente perda da posse ou da propriedade, e não uma mera cogitação da perda ou limitação desse Direito. 4. O trânsito em julgado da decisão que atribui a outrem a posse ou a propriedade da coisa confere o respaldo ideal para o exercício do direito oriundo da evicção. Todavia, o aplicador do direito não pode ignorar a realidade hodierna do trâmite processual nos tribunais que, muitas vezes, faz com que o processo permaneça ativo por longos anos, ocasionando prejuízos consideráveis advindos da constrição imediata dos bens do evicto, que aguarda, impotente, o trânsito em julgado da decisão que já há muito assegurava-lhe o direito. 5. No caso dos autos, notadamente, houve decisão declaratória da ineficácia das alienações dos imóveis litigiosos - assim como seu arresto - em virtude do reconhecimento de fraude nos autos da execução fiscal movida pelo Estado de Goiás contra a empresa Onogás S/A, que transferiu os referidos bens à recorrente, sendo certo que, em consulta ao sítio do Tribunal a quo, verificou-se a improcedência dos embargos à execução fiscal em 14/12/2012, em processo que tramita desde 1998. 6. Dessarte, a despeito de não ter ainda ocorrido o trânsito em julgado da decisão prolatada na execução fiscal, que tornou ineficaz a alienação dos bens imóveis objeto do presente recurso, as circunstâncias fáticas e jurídicas acenam para o robusto direito do adquirente, mormente ante a determinação de arresto, medida que pode implicar no desapossamento dos bens e que promove sua imediata afetação ao procedimento executivo futuro. 7. O exercício do direito oriundo da evicção independe da denunciação da lide ao alienante na ação em que terceiro reivindica a coisa, sendo certo que tal omissão apenas acarretará para o réu a perda da pretensão regressiva, privando-lhe da imediata obtenção do título executivo contra o obrigado regressivamente, restando-lhe, ainda, o ajuizamento de demanda autônoma. Ademais, no caso, o adquirente não integrou a relação jurídico-processual que culminou na decisão de ineficácia da alienação, haja vista se tratar de executivo fiscal, razão pela qual não houve o descumprimento da cláusula contratual que previu o chamamento da recorrente ao processo. 8. Recurso especial não provido. (REsp 1.332.112/GO)

Seja como for, o evicto também não está obrigado a reclamar a evicção antes do trânsito em julgado da sentença, pois a prescrição não corre enquanto isso não ocorrer, nos termos do art. 199, III do Código Civil:

Art. 199. Não corre igualmente a prescrição:
I - pendendo condição suspensiva;
II - não estando vencido o prazo;
III - pendendo ação de evicção.

Trata-se de uma causa impeditiva do prazo prescricional, pois somente após o trânsito em julgado da sentença a ser proferida na ação em qeu se discute a evicção, com a decisão sobre a destinação do bem evicto, é que o prazo prescricional volta a correr. (TARTUCE, 2013, p. 213)

3.       Direito Anterior de Terceiro        

Pelo exposto, na falta da cláusula de exclusão de garantia, a responsabilidade do alienante será plena e abarca as seguintes parcelas, nos termos do art. 450:

è  O valor do preço pago, a ser calculado no dia em que ocorreu a evicção;
è  Os frutos que eventualmente o adquirente for obrigado a restituir ao terceiro;
è  Indenização pelos danos emergentes e lucros cessantes
è  Custas judiciais e honorários de advogado

Art. 450. Salvo estipulação em contrário, tem direito o evicto, além da restituição integral do preço ou das quantias que pagou:

I - à indenização dos frutos que tiver sido obrigado a restituir;
II - à indenização pelas despesas dos contratos e pelos prejuízos que diretamente resultarem da evicção;
III - às custas judiciais e aos honorários do advogado por ele constituído.
Parágrafo único. O preço, seja a evicção total ou parcial, será o do valor da coisa, na época em que se evenceu, e proporcional ao desfalque sofrido, no caso de evicção parcial.

Nota-se, portanto, que o valor a ser considerado para fixação do preço do bem é aquele apurado no momento em que houve a perda efetiva da coisa, nos termos do parágrafo único do art. 450.

4.       Espécies de Evição

A evicção poderá ser classificada como total ou parcial conforme “tenha alcançado a totalidade da situação jurídica adquirida ou apenas alguns de seus elementos” (FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 491)

a)       Total

Sendo total a evicção, o evicto terá o direito potestativo de exigir o desfazimento do negócio, com restituição integral da quantia paga, apurada pelo preço vigente ao tempo da evicção, além de exigir o pagamento de frutos, despesas com o contrato, prejuízos diretamente relacionados à evicção, além de custas e honorários de advogado.

b)       Parcial

Se a perda for considerável, o evicto pode optar entre a rescisão do contrato ou pela restituição da parte do preço correspondente ao desfalque sofrido. Por outro lado, não sendo considerável a perda, resta ao evicto apenas o direito à indenização. Seria o caso do evicto que, num lote de 20 automóveis adquiridos, tenha sido privado de 10 deles, por documentação falsa.

5.       Extensão da Garantia

Não havendo acordo para ampliar, reduzir ou excluir o direito do evicto contra o alienante, a extensão da garantia é aquela assinalada pelo art. 450 do Código Civil:

Art. 450. Salvo estipulação em contrário, tem direito o evicto, além da restituição integral do preço ou das quantias que pagou:

I - à indenização dos frutos que tiver sido obrigado a restituir;
II - à indenização pelas despesas dos contratos e pelos prejuízos que diretamente resultarem da evicção;
III - às custas judiciais e aos honorários do advogado por ele constituído.

Parágrafo único. O preço, seja a evicção total ou parcial, será o do valor da coisa, na época em que se evenceu, e proporcional ao desfalque sofrido, no caso de evicção parcial.

Nota-se, assim, que o objetivo é assegurar uma indenização integral ao evicto. A lógica é o ressarcimento integral. Portanto, o evicto, a partir do momento em que não pode ignorar que sua posse era de má fé, terá de ressarcir ao evictor os frutos colhidos e percebidos no período em que esteve com o bem. Logo, este valor poderá ser cobrado do alienante.

No mais, todas as despesas com cartórios, registros, impostos, além de lucros cessantes (se o evicto foi privado de um imóvel que tinha alugado, por exemplo) deverão ser pagos pelo alienante.

a)       Qual será o valor do preço a ser pago pelo alienante?

Quanto ao valor do preço pago pelo bem, uma pergunta sempre é feita: o juiz deve considerar o valor do bem no momento da aquisição ou no momento em que o evicto sofreu a perda? O código oferece uma resposta ao estabelecer que “o preço [...] será o do valor da coisa, na época em que se evenceu (art. 450, p. único). Época em que se evenceu significa época em que houve a perda, ou seja, a privação da posse do bem.

Com isso, a lei parte do princípio de que o bem sempre tende a sofrer valorização (mais valia) e que o alienante deve responder por ela. Contudo, ao contrário, muitos bens ficam desvalorizados com o tempo, de modo que o alienante se beneficiaria se pagasse o valor de acordo com o que ordena o código.

Em situação como essa, não se deve interpretar à risca o art. 450, pois isso implicaria em atribuir ao alienante uma vantagem indevida (enriquecimento sem causa). O montante indenizatório deverá sempre corresponder à exata extensão dos danos, nos termos do art. 944 do Código Civil.

b)       Sobre as Deteriorações (Art. 451 e 452)

As deteriorações ocorridas pelo desgaste natural também não poderão ser descontadas do preço, salvo se causadas dolosamente pelo evicto (art. 451) ou se ele teve algum tipo de vantagem (exemplo: cortou algumas árvores para vender lenha). Aqui, vale a advertência de Caio Mario da Silva Pereira: “se a lei não quer que o adquirente sofra prejuízo com a evicção, não a erige, entretanto, como fonte de enriquecimento” (apud FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 502). No caso, o valor das vantagens é que será levado em conta para a dedução dos prejuízos.

c)       Sobre as Benfeitorias (Art. 453)

Outro aspecto que pode estar presente na questão da indenização é o que atine às benfeitorias, que são melhorias (espécies de bens acessórios) introduzidas no bem principal para sua conservação, melhoramento ou embelezamento. Assim, se o evicto tinha consertado telhas, feito mais um banheiro na área externa da casa, trocou pisos de um apartamento, não poderá ser privado do bem principal sem ser indenizado por elas.

Inclusive se não for indenizado o evicto pode invocar o direito de retenção do bem principal enquanto não for ressarcido por elas. No que tange a este assunto, o código impõe a responsabilidade pelo pagamento ao evictor, mas se este não abonar as benfeitorias (leia-se: reembolsá-las), poderá cobrá-las do alienante.

Mas o alienante acabaria por responder por uma benfeitoria que beneficiou o evicto! Não seria injusto. Sim, mas cabe ao alienante, se for o caso, propor ação regressiva contra o evictor.

Ainda sobre as benfeitorias, a lógica do locupletamento indevido volta à tona quando o Código Civil cogita (art. 454) a possibilidade das melhorias terem sido realizadas pelo alienante, no tempo em que o bem ainda estava com ele. Se o evictor reembolsá-las ao evicto, este receberia um valor por uma benfeitoria que não fez. Logo, seria enriquecimento sem causa. Sendo assim, o alienante está autorizado a descontar esses valores da indenização.

Como se vê, as regras são simples, cansativas e ainda apresentam terminologia pouco usual. Todas elas decorrem basicamente de dois princípios: indenização integral (art. 944) e vedação ao enriquecimento sem causa (art. 884)
  
6.       Cláusula de Reforço, Redução ou Exclusão da Garantia (art. 448)

A evicção é uma garantia legal. Por isso, não precisa estar expressa no contrato para ser exercida. É certo, porém, que os contratantes podem negociar sobre o reforço, a redução ou até mesmo a exclusão da garantia à evicção, como deixa claro o art. 448:

Art. 448. Podem as partes, por cláusula expressa, reforçar, diminuir ou excluir a responsabilidade pela evicção.

Afirma-se, com isso, que a evicção se submete ao “poder de autodeterminação dos contratantes” (FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 503)

Dessa forma, elas podem, por exemplo, criar uma cláusula que aumente as garantias do adquirente, impondo uma pena de pagamento em dobro, caso ocorra a evicção. Por outro lado, podem estabelecer que, na hipótese de evicção, o evicto só terá direito à metade do valor do bem perdido e, finalmente, podem ajustar até mesmo a exclusão da garantia à evicção (pactum de non paaestanda evictione), isso desde que observados alguns parâmetros legais.

6.1.  Cláusula de Exclusão da Garantia

A lei não encara muito bem a possibilidade de exclusão do direito à evicção, pois significaria permitir uma situação de total desvantagem para o adquirente e enriquecimento sem causa. A cláusula de exclusão não nasce com eficácia plena, pois está submetida à restrições legais.

Diante disso, mesmo diante de uma cláusula de evicção, o alienante responde ao menos pelo preço da coisa em duas situações (art. 449)

è  Quando o evicto não soube do risco da evicção ou
è  Mesmo quando foi dele informado, não o assumiu.

Com efeito, a partir de uma interpretação teleológica da regra constante do art. 449 do CC/02, a cláusula de exclusão da garantia só prevalece totalmente quando o alienante levar ao conhecimento os riscos possíveis em relação à perda da coisa, e o adquirente, devidamente informado, tenha assumido expressamente esse risco (através de uma declaração firmada em documento à parte, por exemplo).

A regra está em sintonia com a boa fé objetiva que, por sua função integrativa, é fonte dos deveres anexos, dentre os quais está o dever de informação e colaboração (art. 422)

Em tom didático, então, pode-se afirmar que a cláusula de exclusão da garantia só é totalmente excluída quando o dever de informação foi cumprido satisfatoriamente pelo alienante e o adquirente tenha concordado e assumido o risco ao qual se sujeitou (cláusula de assunção do risco). Do contrário, a despeito da cláusula de exclusão, o adquirente pode exigir pelo menos o preço que pagou pela coisa, para evitar o enriquecimento sem causa (art. 884 do CC)

A cláusula de exclusão, portanto, deve estar acompanhada da cláusula de assunção do risco. Somente assim, o adquirente assumirá a responsabilidade integral diante da perda posterior do bem. O contrato, que era comutativo, passa então a ser aleatório diante do evento futuro e incerto que pode comprometer a coisa adquirida. Mesmo assim, tal cláusula não seria válida em contratos de adesão (art. 424) ou de consumo (art. 51, I).

6.2.  Incoerências na Evicção

Uma leitura atenta do Código permite concluir que existem certas incoerências na disciplina jurídica da evicção. Veja-se, por exemplo, que, numa perspectiva geral, o contratante que age com dolo tende a ser punido com mais vigor pela lei.

Agora observe a regra do art. 449: o alienante será responsabilizado pelo menos com o pagamento do preço se o contrato contiver cláusula de exclusão da garantia, mas sem a devida advertência ao adquirente. Já se o contrato não tivesse a cláusula de exclusão, o alienante responderia por todas as verbas indenizatórias previstas no art. 450.
Ou seja: o alienante de boa fé, em contrato sem cláusula de exclusão, seria punido mais severamente do que o alienante de má fé, no contrato que tenha cláusula de non praestanda evictione.

Essa é a primeira incoerência.

A outra diz respeito à má fé do adquirente. Pelo art. 449, a cláusula de exclusão só prevalece se o evicto soube e assumiu o risco da evicção. É o que se pode extrair da redação do mencionado dispositivo:

Art. 449. Não obstante a cláusula que exclui a garantia contra a evicção, se esta se der, tem direito o evicto a receber o preço que pagou pela coisa evicta, se não soube do risco da evicção, ou, dele informado, não o assumiu.

O que se pode concluir, então, é que, se o adquirente sabia do risco (porque foi informado), mas não o assumiu expressamente, tem direito de postular pelo menos o valor do preço que pagou.

No entanto, o art. 557 dispõe que se adquirente conhecia o risco no momento da evicção, ele não terá direito à garantia:

Art. 457. Não pode o adquirente demandar pela evicção, se sabia que a coisa era alheia ou litigiosa.

Ou seja: independentemente de uma cláusula de exclusão de garantia, a má fé do adquirente retira-lhe o direito de demandar pela evicção. A contradição é notória, porque, pelo art. 449, se ele soube do risco, mas não o assumiu expressamente, terá direito ao preço!

Afinal, o adquirente que sabia do risco tem ou não direito ao preço? Ao meu sentir, a única forma de proporcionar uma interpretação harmônica entre o art. 449 e 457 é separar duas situações:

No art. 449, o adquirente que sabe do risco, mas não o assume expressamente. Embora conheça a existência de eventuais ações correndo contra o alienante ao tempo da alienação, o adquirente está de boa fé objetiva, pois assume um padrão de comportamento leal. Justamente por isso, a lei lhe confere o direito de pedir pelo menos a restituição do preço se ele vier posteriormente a sofrer a perda do bem.

Já a hipótese do artigo 557 trata de situações que poderiam envolver fraudes. Por exemplo: Em certo contrato, o evicto sabe que haverá a perda posterior do bem e aproveita-se dessa situação para causar prejuízos para o alienante ou terceiros.

Sobre o tema, é oportuno mencionar o recente julgado que foi divulgado pelo STJ, que foi disponibilizado em publicação recente neste blog:
Boa-fé é requisito para o adquirente demandar pela evicção

“Reconhecida a má-fé do arrematante no momento da aquisição do imóvel, não pode ele, sob o argumento de ocorrência de evicção, propor a ação de indenização com base no artigo 70, I, do Código de Processo Civil (CPC) para reaver do alienante os valores gastos com a aquisição do bem.”
Com esse entendimento, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) isentou o Banco do Brasil da obrigação de indenizar os arrematantes de um imóvel, que propuseram a ação indenizatória alegando a ocorrência de evicção.
O imóvel havia sido hipotecado ao banco pelo pai. Levado a leilão, foi arrematado pelos filhos, quando ainda estava pendente de julgamento um mandado de segurança impetrado pelo pai para retomar a propriedade. Após decisão favorável da Justiça no mandado de segurança, os filhos entraram com a ação indenizatória pretendendo ter de volta os valores pagos no leilão.
A Justiça de Goiás determinou que o dinheiro fosse devolvido.
Indispensável
No STJ, a decisão foi reformada. De acordo com o relator do recurso, ministro João Otávio de Noronha, a boa-fé do adquirente é requisito indispensável para a configuração da evicção e a consequente extensão de seus efeitos.
O ministro citou o artigo 457 do Código Civil, segundo o qual “não pode o adquirente demandar pela evicção, se sabia que a coisa era alheia ou litigiosa”. No caso, o Tribunal de Justiça de Goiás reconheceu que os adquirentes tinham ciência de que o imóvel havia sido dado em hipoteca por seu pai e foi levado a leilão quando havia um processo judicial pendente.
A partir desses fatos, a Turma entendeu que não houve boa-fé no momento da aquisição do bem, o que afasta o direito à restituição dos valores com base na evicção. 
A notícia ao lado refere-se
aos seguintes processos:
REsp 1293147


7.       Como Exercer a Garantia da Evicção? (Aspectos Processuais)

Pois bem, visto que a garantia da evicção pode ser exercida quando a perda, total ou parcial da coisa, geralmente acontece nos autos de um processo judicial movido por um terceiro contra o adquirente, é de se perguntar acerca dos meios pelos quais o evicto poderia exercer o seu direito de regresso contra o alienante.

Na verdade o adquirente pode optar entre a denunciação da lide, forma de intervenção de terceiros prevista no art. 70 do atual CPC. Nesse caso, a denunciação deverá ser realizada no mesmo prazo da contestação (15 dias no procedimento ordinário).

Mas o adquirente também pode exercer o seu direito por meio de uma ação autônoma, valendo-se da sentença proferida na ação proposta pelo terceiro como instrumento de prova para garantir o seu direito de reembolso.

Sobre a denunciação da lide, o Código Civil trouxe uma regra nova ao permitir ao alienante a notificação do alienante imediato, ou dos anteriores. Isso é o que a doutrina chama de denunciação por saltos.

Para ilustrar, devemos pensar numa cadeia de alienações – A vende para B, que vende para C, que vende para D. Posteriormente, aparece E, dizendo que tem um direito anterior sobre o bem porque tinha penhorado o bem em um processo de execução movido contra B.

Em tal situação, o adquirente/evicto D pode promover a denunciação da lide contra C (o alienante imediato) ou contra B e A (alienantes primitivos/anteriores). É claro que, dependendo da narrativa apresentada pelo terceiro/evictor, não fará sentido promover a denunciação contra alienantes que efetivamente não tenham nada a ver com a questão, pois isso poderá trazer ônus processuais desnecessários, como custas e honorários advocatícios sucumbenciais.

Tais informações resultam do exposto nos artigos 456 e art. 70 e 71 do CPC:

Art. 456. Para poder exercitar o direito que da evicção lhe resulta, o adquirente notificará do litígio o alienante imediato, ou qualquer dos anteriores, quando e como lhe determinarem as leis do processo.      (Vide Lei n º 13.105, de 2015)    (Vigência)
Art. 70. A denunciação da lide é obrigatória:
I - ao alienante, na ação em que terceiro reivindica a coisa, cujo domínio foi transferido à parte, a fim de que esta possa exercer o direito que da evicção Ihe resulta;

Art. 71. A citação do denunciado será requerida, juntamente com a do réu, se o denunciante for o autor; e, no prazo para contestar, se o denunciante for o réu.
O interessante é que o novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/15), que está em período de vacatio parece ter criado certas restrições quanto à denunciação da lide, pois limitou a denunciação apenas ao alienante imediato.

Acredito que tais alterações ocorreram para evitar a notificação de diversos alienantes, situação que poderia retardar a marcha processual. Enfim, parece-me óbvio o intuito do legislador de promover a celeridade processual, já que o evicto, em qualquer caso, pode propor uma ação autônoma contra qualquer um dos alienantes anteriores.

Tais regras estão previstas no art. 125 da nova lei de procedimentos e garantias processuais:

Art. 125.  É admissível a denunciação da lide, promovida por qualquer das partes:
I - ao alienante imediato, no processo relativo à coisa cujo domínio foi transferido ao denunciante, a fim de que possa exercer os direitos que da evicção lhe resultam;
II - àquele que estiver obrigado, por lei ou pelo contrato, a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo de quem for vencido no processo.
§ 1o O direito regressivo será exercido por ação autônoma quando a denunciação da lide for indeferida, deixar de ser promovida ou não for permitida.
§ 2o Admite-se uma única denunciação sucessiva, promovida pelo denunciado, contra seu antecessor imediato na cadeia dominial ou quem seja responsável por indenizá-lo, não podendo o denunciado sucessivo promover nova denunciação, hipótese em que eventual direito de regresso será exercido por ação autônoma.

Só não vejo razão para restringir a denunciação ao alienante imediato. Ora, se, no exemplo dado acima, o responsável pela perda do bem foi B, não faz sentido o adquirente D ter que denunciar o C, para que este realize uma única denunciação sucessiva contra B.

O novo CPC acha que entende sobre regras de legitimidade processual ativa e passiva, mas incorre em erro grave dentro da sua própria área de atuação. Ora, se B foi o responsável pela evicção, mesmo que não tenha uma relação contratual (vínculo obrigacional) formado diretamente com D, sua dívida para com o evicto teve repercussões na situação jurídica patrimonial de D. Isso é um ilícito extracontratual. Logo, a legitimidade passiva decorre do vínculo gerado pelo ilícito extracontratual e não contratual.

















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