CONTRATO ESTIMATÓRIO (534 a 537)
1. Notícia Histórica. Século II. Vasos Morvinos
O Contrato estimatório tem origem em
Roma. Por volta do Séc. II d.c, um comerciante romano recebeu de um grego
“vasos morvinos” fabricados com um precioso material vindo do oriente. O dono
da mercadoria entregou os vasos ao vendedor romano para que este os vendesse.
Apesar de não ser o proprietário, o
comerciante detinha o poder de disposição sobre a coisa. Concluída a venda, o
vendedor repassava ao proprietário o “preço que fora estimado”, descontado de
uma comissão devida pela venda. Importante notar que o comerciante tinha
liberdade para vender o objeto por um valor maior ou menor, conquanto que
devolvesse ao dono o valor estimado.
Apesar de ter grande importância nesta
época, o contrato foi esquecido durante muitos anos. Dele não cuidou a
legislação brasileira inicialmente (Cód. Comercial e CC/02). A Lei de
Duplicatas (Lei 5.474/68) reservou uma primeira abordagem de forma “en
passant”, mas somente o Cód. Civil de 2002 dedicou um tratamento mais
abrangente.
2. Conceito
É o contrato pelo qual uma das partes
transfere a um terceiro a posse de um bem
móvel, para que este, dentro de certo prazo, efetue a venda do objeto ou,
não logrando êxito na alienação, restitua a coisa ao proprietário.
No contrato estimatório, o consignante
transfere ao consignatário, temporariamente, o poder de alienação da coisa consignada, com opção do pagamento do
preço de estima ou sua restituição ao final do preço ajustado (En. 32 I jornada
CJF)
A venda em consignação é de grande
relevância no comércio, pois só oferece vantagens para as partes. Para o
consignante, amplia o potencial dos negócios. Para o consignatário, reduz
consideravelmente os riscos do negócio. Trata-se de contrato muito comum no
comércio. As livrarias recebem os
livros das editoras em consignação
3. Objeto
O
contrato estimatório tem como objeto bens móveis e infungíveis[1]. Entretanto,
alguns autores sustentam que o contrato estimatório excepcionalmente admitirá
objeto fungível. Ex: consignação de bebidas. Neste caso, o consignatário deverá
restituir o bem da mesma qualidade e quantidade.
4. Transmissão Temporária do Poder de Disposição
Como
visto, no contrato estimatório ocorre a transferência do poder de disposição
para o consignatário. Lembre-se que o direito de propriedade, visto sob um
ponto de vista estrutural, representa um feixe de poderes ou faculdades (uso,
fruição, disposição e reivindicação). No caso, o poder de disposição é
transferido temporariamente para o consignatário.
Disso
resultam duas conseqüências:
a) Impossibilidade de Penhora ou Sequestro dos Bens
Penhorados
O
bem consignado não pode ser objeto de penhora ou seqüestro[2]
por dívidas do consignatário, pois ele é de propriedade do consignante. O
consignatário só tem a posse direta e o poder de disposição. O Código Civil
inclusive prevê tal situação no artigo 536:
Art. 536. A
coisa consignada não pode ser objeto de penhora ou seqüestro pelos credores do
consignatário, enquanto não pago integralmente o preço.
Eventualmente,
se a coisa consignada foi apreendida ou seqüestrada, poderá o consignante opor
embargos de terceiro em eventual ação de execução promovida contra o
consignatário.
b) O Consignante fica impedido de Alienar a Coisa
durante o prazo contratual
O
poder de disposição não pode ser exercido pelo consignante, pois foi
transferido ao proprietário. Ninguém pode transferir mais direitos do que tem.
A regra está em sintonia com a boa fé, pois uma vez entregue o bem em
consignação, o consignatário adotará as providências para a venda do bem obter
sua comissão. Portanto, a regra do artigo 537 preserva a legítima expectativa
do consignatário.
Art. 537. O
consignante não pode dispor da coisa antes de lhe ser restituída ou de lhe ser
comunicada a restituição.
5. Prazo Contratual
A
lei não prevê um prazo máximo para a celebração deste contrato, nem que as
partes são obrigadas a contratar por um prazo determinado. Assim, o contrato
pode ser celebrado por prazo determinado ou indeterminado.
5.1. Prazo Determinado
Caso
as partes convencionem o prazo determinado, ao término do tempo ajustado e não
concluída a venda, o consignatário tem o dever
de restituir o bem. Se o bem não for devolvido, o consignatário estará
automaticamente constituído em mora[3]
(mora ex re). As livrarias, por
exemplo, fecham contrato por um ano.
5.2. Prazo Indeterminado
Por
outro lado, se
o contrato for celebrado por prazo indeterminado, é preciso aguardar um prazo razoável para que o consignatário
envide esforços para realizar a venda. Após esse prazo razoável, se o consignante
quiser resolver o contrato deverá notificar previamente o consignatário. Mora ex persona (art. 397, pú[4]).
6. Classificação
6.1. Comentários Gerais
O contrato
estimatório pode ser classificado como típico, oneroso, comutativo, não solene,
bilateral, real e fiduciário.
Importa fazer
comentário apenas sobre os três últimos:
É bilateral
porque gera obrigações para ambas as partes, sendo que as do consignante são:
è pagar a
remuneração ajustada;
è não turbar a
posse do consignatário;
è não dispor da
coisa antes do prazo.
Já as obrigações
do consignatário são:
è envidar esforços para a venda da coisa;
è pagar o preço de estima ao consignante ou
restituir a coisa no término do contrato.”
Já quanto ao
caráter real, isso se deve porque o contrato só se aperfeiçoa com a entrega da
posse do bem ao consignatário. A simples assinatura do contrato não basta para
formar a relação negocial. (GAGLIANO; FILHO, 2012, p. 124).
6.2. Natureza Jurídica da obrigação do Consignatário
A obrigação do
consignatário é alternativa ou facultativa. Eis uma polêmica doutrinária. E
mais, que diferença isso poderia fazer na prática?
Para começar,
vamos definir o que vem a ser cada uma delas:
a) Obrigação alternativa
A obrigação
alternativa é espécie do gênero da obrigação composta. Esta, por sua vez, é um
tipo de obrigação em que há ou mais de um sujeito ativo; mais de um sujeito
passivo; ou mais de uma prestação.
Quanto num
contrato há mais de uma prestação, diz-se que se tem uma obrigação composta
objetiva, que é o mesmo que obrigação alternativa ou disjuntiva[5].
Conseqüência: em
caso de impossibilidade do cumprimento de uma prestação, o devedor deve cumprir
a outra. O contrato só se extingue se todas as prestações tornarem-se
impossíveis sem culpa do devedor.
b) Obrigação facultativa
Já a obrigação
facultativa, que não tem previsão expressa no Código Civil, é espécie de uma
obrigação simples. Nela, o devedor tem uma prestação, a saber: a entrega de uma
coisa que, à sua escolha, pode ser substituída pela entrega de dinheiro. Há,
portanto, uma prestação fungível, pois o devedor pode escolher entre a entrega
de uma coisa ou o preço respectivo. O credor não pode exigir uma ou outra, mas
apenas a prestação. Assim, se não há mais de uma prestação, não se trata de
obrigação composta.
Consequência: na
impossibilidade de cumprimento da prestação, sem culpa do devedor, a obrigação
se resolverá sem perdas e danos.
c) Análise
Por enquanto não
vejo nenhum sentido e importância em classificar a obrigação como alternativa
ou facultativa. O objetivo é que o consignatário entregue o preço estimado ou
devolva o bem ao término do contrato. Se por algum motivo, perecimento ou
venda, o bem não puder ser entregue, subsiste o dever de pagamento do preço
estimado e pronto.
Agora, se o
consignatário vender o bem a terceiro, este, independente se houve o pagamento
ou não, adquire a propriedade sobre o bem. Não cabe ação de reintegração, muito
menos ação de reivindicação de posse para reaver o bem de terceiros.
Por outro lado,
entendo que cabe ação de reintegração de posse se o consignatário recusar-se
indevidamente à restituição da coisa.
Inclusive o TJSP
já deferiu liminar de reintegração de posse para o consignante em caso no qual
o consignatário se recusou a devolver o bem, sob a alegação de que fez reparos
necessários na coisa. Se realmente houve os reparos, entendo que são
benfeitorias úteis, senão necessárias, que devem ser indenizadas, cabendo ao
possuidor de boa fé o direito de retenção. Assim, se o consignante desistiu da
venda e quis de volta o veículo antes do término do contrato ou do prazo
razoável para a venda, não lhe assistiria a reintegração de posse. Porém, esses
dados não ficaram claros. Vejamos a Ementa do Acórdão número
0085582-17.2013.8.26.0000, da lavra da 30ª Câmara de Direito Privado:
Ementa:
AGRAVO
DE INSTRUMENTO. Contrato estimatório. Denúncia pela consignante. Direito à
retomada do bem (veículo automotor). Ação de reintegração de posse. Hipótese,
que legitima a concessão de medida liminar. Recurso da autora. Provimento.
7. Responsabilidade pelos Riscos
7.1. Caso Fortuito e Força Maior
Com relação aos
riscos decorrentes de caso fortuito e força maior, vamos supor as seguintes
situações:
1º)
deixo meu veículo com uma agência para a venda do mesmo. Durante a vigência do
contrato ocorre uma chuva torrencial e o estabelecimento onde se encontrava o
veículo é inundado, acarretando a perda total do bem.
2º)
Considerando o mesmo caso, vamos supor que a perda do bem tenha sido
decorrência não de uma chuva (evento da natureza), mas de um roubo.
Pergunta:
Nesses casos, o consignatário responde pela perda do bem?
Resp.
Sim para ambos os casos. A regra do art. 535[6]
traduz o postulado res perit debitoris .
A coisa perece para o devedor, ainda que por fato a ele não imputável. É uma
exceção à máxima res perit domino e o
dispositivo consagra uma hipótese de Responsabilidade objetiva por risco
integral (risco integral é aquele que não pode ser afastado por caso fortuito
ou força maior).
A título de
exemplo, o TJSP julgou um caso em que uma motocicleta foi roubada dentro do
estabelecimento do consignatário. O caso foi decidido pela 30ª Câmara de
Direito Privado, na Apelação Cível nº 992.07.052654-0. O acórdão apresenta a
seguinte ementa:
Ementa:
CONTRATO
VERBAL ESTIMATORIO - AÇÃO DE COBRANÇA DO PREÇO ? MOTOCICLETA - OCORRÊNCIA DE
ROUBO - RESPONSABILIDADE DO CONS1GNATÁRIO PELA PERDA DA COISA, AINDA QUE EM
CASO FORTUITO OU DE FORÇA MAIOR - INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 535 DO CÓDIGO CIVIL DE
2002. Recurso desprovido.
7.2. Risco de Crédito (Inadimplência do Terceiro
Adquirente)
O contrato
estimatório cumpre sua finalidade quando o consignatário realiza a venda do bem
a terceiro, de preferência por valor superior ao estimado, para ampliar as
vantagens das partes. Mas e se o terceiro adquirente não cumprir o pagamento
ajustado. Quem, nesta situação, responderia perante o consignante? É claro que
apenas o consignatário responde, pois não existe vínculo contratual direto
entre o consignante e o terceiro, mas apenas entre consignante e consignatário.
Vemos um exemplo
de uma situação como essa no TJSP:
Trata-se da
apelação nº 9179788-11.2006.8.26.0000
julgado pela 25ª Câmara de
Direito Privado com acórdão assim ementado:
Ementa:
APELAÇÃO
- BEM MÓVEL/SEMOVENTE - CONTRATO ESTIMATÓRIO - VENDA DE AUTOMÓVEL EM
CONSIGNAÇÃO - AÇÃO DE COBRANÇA CUMULADA COM INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS - PRETENSÃO
DEDUZIDA EM FACE DE TERCEIRO ADQUIRENTE - DESCABIMENTO - COBRANÇA QUE DEVERIA
SER VOLTADA EM FACE DO CONSIGNATÁRIO - LOJA DE AUTOMÓVEIS - RELAÇÃO JURÍDICA
QUE NÃO ALCANÇA O TERCEIRO - LOJA RESPONSÁVEL PELA VENDA QUE TEM A OBRIGAÇÃO DE
REPASSAR O PREÇO ESTIMADO AO CONSIGNANTE - SENTENÇA - PROCEDÊNCIA PARCIAL DA
DEMANDA PARA CONDENAR O TERCEIRO A PAGAR O PREÇO DA VENDA AO CONSIGNANTE -
REJEIÇÃO DO PEDIDO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS - REFORMA - REJEIÇÃO
COMPLETA DA PRETENSÃO DEDUZIDA NA PEÇA INICIAL - INEXISTÊNCIA DE CONDUTA
ILÍCITA DO TERCEIRO ADQUIRENTE. APELAÇÃO DO RÉU PROVIDA. APELAÇÃO DO AUTOR
PREJUDICADA
Só para
esclarecer o caso acima: o proprietário de um veículo DAKOTA SPORT 3.0C
entregou o veículo a uma agência especializada na venda em consignação
(contrato estimatório). Durante o prazo contratual, um terceiro se interessou
pelo veículo e contratou um leasing financeiro junto a uma empresa de
arrendamento mercantil que pagou o veículo à agência consignatária, só que esta
não repassou o valor ao consignante. Imagino que a agência não tinha recurso
suficiente para restituir o valor ao consignante – pode ter fechado as portas,
por exemplo – e o consignante resolveu cobrar diretamente da empresa de
arrendamento que teria maiores condições para pagamento. No entanto, como
nenhuma relação foi firmada entre consignante e o terceiro que comprou o carro
(empresa de arrendamento mercantil).
8. Responsabilidade pelos Vícios Redibitórios
E se o bem
objeto do contrato estimatório padece de um vício oculto? O terceiro adquirente
poderia propor a ação redibitória ou quanti
minoris contra o consignatário, contra o consignante ou contra ambos.
Segundo Cristiano Chaves, a responsabilidade é do consignante!
Tenho dúvidas
aqui, pois se não há relação jurídica entre consignante e terceiro, um não tem
qualquer pretensão contra o outro. E mais! Normalmente há entre o consignatário
(agência) e o terceiro uma relação de consumo, e neste caso todos os
integrantes da cadeia de fornecimento respondem objetivamente pelos vícios do
produto ou serviço, nos termos do artigo 18 do CDC[7].
Fica a dúvida, porém, se o consignante pode ser considerado como integrante da
cadeia de consumo para tal fim.
[1] O bem
infungível é aquele que não pode ser substituído, pois apresenta
características que interessam ao proprietário. Assim, o consignatário deverá
restituir o mesmo bem que lhe foi entregue.
[2]
É certo que existem semelhanças entre o arresto e o sequestro, pois ambas são
medidas cautelares nominadas e implicam a constrição de bens a serem
preservados para que sirvam aos resultados da futura ou atual ação principal,
de conhecimento ou de execução. Entretanto, entre eles há marcantes distinções
que eliminam oportunidades para dúvidas quanto ao cabimento de um e
outro. Enquanto o arresto constitui medida de conservação de bens
patrimoniais do devedor para assegurar o futuro pagamento em dinheiro, o
sequestro representa providência de mera preservação da coisa cuja entrega
"in natura" é almejada pelo requerente. Portanto, no arresto não
interessa ao postulante o bem em si, mas sim sua representação monetária
para a garantia do crédito a ser exigido em execução por quantia
certa. No sequestro, o interesse do requerente recai sobre a própria coisa
sujeita a desaparecimento ou deterioração, afinal, é ela que se pretende
ver entregue ao vencedor da demanda principal, cognitiva ou
executiva. Logo, são irretocáveis as lições de todos os escritores quando
afirmam que o arresto incide sobre qualquer bem penhorável do devedor, desde
que necessário para assegurar a solução da dívida, ao passo que o sequestro
recai sobre bem específico, certo, determinado, fungível ou não. Por isso, o
arresto aparece como uma medida de segurança do cumprimento da sentença que
resulta a obrigação de pagar soma em dinheiro (art. 475-J) ou da ação de
execução por quantia certa (art. 646). De outro lado, o sequestro se
apresenta como uma cautela ao cumprimento da decisão que determina a entrega da
coisa (vg. art. 461-A) ou da ação executiva de título extrajudicial promovida
para esse mesmo fim (art. 621). MACIEL, Daniel Baggio in Processo Cautelar. São
Paulo: Editora Boreal, 2012. Disponível em:
http://istoedireito.blogspot.com.br/2008/05/diferena-entre-o-arresto-cautelar-e-o.html.
Acesso em 31/12/14
[3] Art. 397. O inadimplemento da
obrigação, positiva e líquida, no seu termo, constitui de pleno direito em mora
o devedor.
[4] Art. 397 [...]
Parágrafo único. Não havendo termo, a mora se
constitui mediante interpelação judicial ou extrajudicial.
[5] Art. 252. Nas obrigações
alternativas, a escolha cabe ao devedor, se outra coisa não se estipulou.
Art. 253. Se uma das duas prestações não puder ser
objeto de obrigação ou se tornada inexeqüível, subsistirá o débito quanto à
outra.
Art. 256. Se todas as prestações se tornarem
impossíveis sem culpa do devedor, extinguir-se-á a obrigação.
[6] Art. 535. O consignatário não se
exonera da obrigação de pagar o preço, se a restituição da coisa, em sua integridade,
se tornar impossível, ainda que por fato a ele não imputável.
[7][7] Art. 18. Os fornecedores de
produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos
vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao
consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles
decorrentes da disparidade, com a indicações constantes do recipiente, da
embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações
decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das
partes viciadas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário