quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

CONTRATO ESTIMATÓRIO



CONTRATO ESTIMATÓRIO (534 a 537)
1.       Notícia Histórica. Século II. Vasos Morvinos

O Contrato estimatório tem origem em Roma. Por volta do Séc. II d.c, um comerciante romano recebeu de um grego “vasos morvinos” fabricados com um precioso material vindo do oriente. O dono da mercadoria entregou os vasos ao vendedor romano para que este os vendesse.
Apesar de não ser o proprietário, o comerciante detinha o poder de disposição sobre a coisa. Concluída a venda, o vendedor repassava ao proprietário o “preço que fora estimado”, descontado de uma comissão devida pela venda. Importante notar que o comerciante tinha liberdade para vender o objeto por um valor maior ou menor, conquanto que devolvesse ao dono o valor estimado.
Apesar de ter grande importância nesta época, o contrato foi esquecido durante muitos anos. Dele não cuidou a legislação brasileira inicialmente (Cód. Comercial e CC/02). A Lei de Duplicatas (Lei 5.474/68) reservou uma primeira abordagem de forma “en passant”, mas somente o Cód. Civil de 2002 dedicou um tratamento mais abrangente.
2.       Conceito  

É o contrato pelo qual uma das partes transfere a um terceiro a posse de um bem móvel, para que este, dentro de certo prazo, efetue a venda do objeto ou, não logrando êxito na alienação, restitua a coisa ao proprietário.

No contrato estimatório, o consignante transfere ao consignatário, temporariamente, o poder de alienação da coisa consignada, com opção do pagamento do preço de estima ou sua restituição ao final do preço ajustado (En. 32 I jornada CJF)

A venda em consignação é de grande relevância no comércio, pois só oferece vantagens para as partes. Para o consignante, amplia o potencial dos negócios. Para o consignatário, reduz consideravelmente os riscos do negócio. Trata-se de contrato muito comum no comércio. As livrarias recebem os livros das editoras em consignação
3.       Objeto

O contrato estimatório tem como objeto bens móveis e infungíveis[1]. Entretanto, alguns autores sustentam que o contrato estimatório excepcionalmente admitirá objeto fungível. Ex: consignação de bebidas. Neste caso, o consignatário deverá restituir o bem da mesma qualidade e quantidade.

4.       Transmissão Temporária do Poder de Disposição

Como visto, no contrato estimatório ocorre a transferência do poder de disposição para o consignatário. Lembre-se que o direito de propriedade, visto sob um ponto de vista estrutural, representa um feixe de poderes ou faculdades (uso, fruição, disposição e reivindicação). No caso, o poder de disposição é transferido temporariamente para o consignatário.

Disso resultam duas conseqüências:

a)       Impossibilidade de Penhora ou Sequestro dos Bens Penhorados

O bem consignado não pode ser objeto de penhora ou seqüestro[2] por dívidas do consignatário, pois ele é de propriedade do consignante. O consignatário só tem a posse direta e o poder de disposição. O Código Civil inclusive prevê tal situação no artigo 536:

Art. 536. A coisa consignada não pode ser objeto de penhora ou seqüestro pelos credores do consignatário, enquanto não pago integralmente o preço.

Eventualmente, se a coisa consignada foi apreendida ou seqüestrada, poderá o consignante opor embargos de terceiro em eventual ação de execução promovida contra o consignatário.

b)       O Consignante fica impedido de Alienar a Coisa durante o prazo contratual

O poder de disposição não pode ser exercido pelo consignante, pois foi transferido ao proprietário. Ninguém pode transferir mais direitos do que tem. A regra está em sintonia com a boa fé, pois uma vez entregue o bem em consignação, o consignatário adotará as providências para a venda do bem obter sua comissão. Portanto, a regra do artigo 537 preserva a legítima expectativa do consignatário.

Art. 537. O consignante não pode dispor da coisa antes de lhe ser restituída ou de lhe ser comunicada a restituição.

5.       Prazo Contratual

A lei não prevê um prazo máximo para a celebração deste contrato, nem que as partes são obrigadas a contratar por um prazo determinado. Assim, o contrato pode ser celebrado por prazo determinado ou indeterminado.

5.1.  Prazo Determinado

Caso as partes convencionem o prazo determinado, ao término do tempo ajustado e não concluída a venda, o consignatário tem o dever de restituir o bem. Se o bem não for devolvido, o consignatário estará automaticamente constituído em mora[3] (mora ex re). As livrarias, por exemplo, fecham contrato por um ano.

5.2.  Prazo Indeterminado

Por outro lado, se o contrato for celebrado por prazo indeterminado, é preciso aguardar um prazo razoável para que o consignatário envide esforços para realizar a venda. Após esse prazo razoável, se o consignante quiser resolver o contrato deverá notificar previamente o consignatário. Mora ex persona (art. 397, pú[4]).
6.       Classificação

6.1.  Comentários Gerais

O contrato estimatório pode ser classificado como típico, oneroso, comutativo, não solene, bilateral, real e fiduciário.

Importa fazer comentário apenas sobre os três últimos:

É bilateral porque gera obrigações para ambas as partes, sendo que as do consignante são:

è  pagar a remuneração ajustada;
è  não turbar a posse do consignatário;
è  não dispor da coisa antes do prazo.

Já as obrigações do consignatário são:

è   envidar esforços para a venda da coisa;
è   pagar o preço de estima ao consignante ou restituir a coisa no término do contrato.”

Já quanto ao caráter real, isso se deve porque o contrato só se aperfeiçoa com a entrega da posse do bem ao consignatário. A simples assinatura do contrato não basta para formar a relação negocial. (GAGLIANO; FILHO, 2012, p. 124).

6.2.  Natureza Jurídica da obrigação do Consignatário

A obrigação do consignatário é alternativa ou facultativa. Eis uma polêmica doutrinária. E mais, que diferença isso poderia fazer na prática?

Para começar, vamos definir o que vem a ser cada uma delas:

a)       Obrigação alternativa

A obrigação alternativa é espécie do gênero da obrigação composta. Esta, por sua vez, é um tipo de obrigação em que há ou mais de um sujeito ativo; mais de um sujeito passivo; ou mais de uma prestação.

Quanto num contrato há mais de uma prestação, diz-se que se tem uma obrigação composta objetiva, que é o mesmo que obrigação alternativa ou disjuntiva[5].

Conseqüência: em caso de impossibilidade do cumprimento de uma prestação, o devedor deve cumprir a outra. O contrato só se extingue se todas as prestações tornarem-se impossíveis sem culpa do devedor.

b)       Obrigação facultativa

Já a obrigação facultativa, que não tem previsão expressa no Código Civil, é espécie de uma obrigação simples. Nela, o devedor tem uma prestação, a saber: a entrega de uma coisa que, à sua escolha, pode ser substituída pela entrega de dinheiro. Há, portanto, uma prestação fungível, pois o devedor pode escolher entre a entrega de uma coisa ou o preço respectivo. O credor não pode exigir uma ou outra, mas apenas a prestação. Assim, se não há mais de uma prestação, não se trata de obrigação composta.

Consequência: na impossibilidade de cumprimento da prestação, sem culpa do devedor, a obrigação se resolverá sem perdas e danos.

c)       Análise

Por enquanto não vejo nenhum sentido e importância em classificar a obrigação como alternativa ou facultativa. O objetivo é que o consignatário entregue o preço estimado ou devolva o bem ao término do contrato. Se por algum motivo, perecimento ou venda, o bem não puder ser entregue, subsiste o dever de pagamento do preço estimado e pronto.

Agora, se o consignatário vender o bem a terceiro, este, independente se houve o pagamento ou não, adquire a propriedade sobre o bem. Não cabe ação de reintegração, muito menos ação de reivindicação de posse para reaver o bem de terceiros.

Por outro lado, entendo que cabe ação de reintegração de posse se o consignatário recusar-se indevidamente à restituição da coisa.

Inclusive o TJSP já deferiu liminar de reintegração de posse para o consignante em caso no qual o consignatário se recusou a devolver o bem, sob a alegação de que fez reparos necessários na coisa. Se realmente houve os reparos, entendo que são benfeitorias úteis, senão necessárias, que devem ser indenizadas, cabendo ao possuidor de boa fé o direito de retenção. Assim, se o consignante desistiu da venda e quis de volta o veículo antes do término do contrato ou do prazo razoável para a venda, não lhe assistiria a reintegração de posse. Porém, esses dados não ficaram claros. Vejamos a Ementa do Acórdão número 0085582-17.2013.8.26.0000, da lavra da 30ª Câmara de Direito Privado:

Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO. Contrato estimatório. Denúncia pela consignante. Direito à retomada do bem (veículo automotor). Ação de reintegração de posse. Hipótese, que legitima a concessão de medida liminar. Recurso da autora. Provimento.

7.       Responsabilidade pelos Riscos

7.1.  Caso Fortuito e Força Maior

Com relação aos riscos decorrentes de caso fortuito e força maior, vamos supor as seguintes situações:

1º) deixo meu veículo com uma agência para a venda do mesmo. Durante a vigência do contrato ocorre uma chuva torrencial e o estabelecimento onde se encontrava o veículo é inundado, acarretando a perda total do bem.

2º) Considerando o mesmo caso, vamos supor que a perda do bem tenha sido decorrência não de uma chuva (evento da natureza), mas de um roubo.

Pergunta: Nesses casos, o consignatário responde pela perda do bem?

Resp. Sim para ambos os casos. A regra do art. 535[6] traduz o postulado res perit debitoris . A coisa perece para o devedor, ainda que por fato a ele não imputável. É uma exceção à máxima res perit domino e o dispositivo consagra uma hipótese de Responsabilidade objetiva por risco integral (risco integral é aquele que não pode ser afastado por caso fortuito ou força maior).

A título de exemplo, o TJSP julgou um caso em que uma motocicleta foi roubada dentro do estabelecimento do consignatário. O caso foi decidido pela 30ª Câmara de Direito Privado, na Apelação Cível nº 992.07.052654-0. O acórdão apresenta a seguinte ementa:

Ementa: CONTRATO VERBAL ESTIMATORIO - AÇÃO DE COBRANÇA DO PREÇO ? MOTOCICLETA - OCORRÊNCIA DE ROUBO - RESPONSABILIDADE DO CONS1GNATÁRIO PELA PERDA DA COISA, AINDA QUE EM CASO FORTUITO OU DE FORÇA MAIOR - INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 535 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. Recurso desprovido.

7.2.  Risco de Crédito (Inadimplência do Terceiro Adquirente)

O contrato estimatório cumpre sua finalidade quando o consignatário realiza a venda do bem a terceiro, de preferência por valor superior ao estimado, para ampliar as vantagens das partes. Mas e se o terceiro adquirente não cumprir o pagamento ajustado. Quem, nesta situação, responderia perante o consignante? É claro que apenas o consignatário responde, pois não existe vínculo contratual direto entre o consignante e o terceiro, mas apenas entre consignante e consignatário.

Vemos um exemplo de uma situação como essa no TJSP:

Trata-se da apelação nº 9179788-11.2006.8.26.0000               julgado pela 25ª Câmara de Direito Privado com acórdão assim ementado:

Ementa: APELAÇÃO - BEM MÓVEL/SEMOVENTE - CONTRATO ESTIMATÓRIO - VENDA DE AUTOMÓVEL EM CONSIGNAÇÃO - AÇÃO DE COBRANÇA CUMULADA COM INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS - PRETENSÃO DEDUZIDA EM FACE DE TERCEIRO ADQUIRENTE - DESCABIMENTO - COBRANÇA QUE DEVERIA SER VOLTADA EM FACE DO CONSIGNATÁRIO - LOJA DE AUTOMÓVEIS - RELAÇÃO JURÍDICA QUE NÃO ALCANÇA O TERCEIRO - LOJA RESPONSÁVEL PELA VENDA QUE TEM A OBRIGAÇÃO DE REPASSAR O PREÇO ESTIMADO AO CONSIGNANTE - SENTENÇA - PROCEDÊNCIA PARCIAL DA DEMANDA PARA CONDENAR O TERCEIRO A PAGAR O PREÇO DA VENDA AO CONSIGNANTE - REJEIÇÃO DO PEDIDO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS - REFORMA - REJEIÇÃO COMPLETA DA PRETENSÃO DEDUZIDA NA PEÇA INICIAL - INEXISTÊNCIA DE CONDUTA ILÍCITA DO TERCEIRO ADQUIRENTE. APELAÇÃO DO RÉU PROVIDA. APELAÇÃO DO AUTOR PREJUDICADA

Só para esclarecer o caso acima: o proprietário de um veículo DAKOTA SPORT 3.0C entregou o veículo a uma agência especializada na venda em consignação (contrato estimatório). Durante o prazo contratual, um terceiro se interessou pelo veículo e contratou um leasing financeiro junto a uma empresa de arrendamento mercantil que pagou o veículo à agência consignatária, só que esta não repassou o valor ao consignante. Imagino que a agência não tinha recurso suficiente para restituir o valor ao consignante – pode ter fechado as portas, por exemplo – e o consignante resolveu cobrar diretamente da empresa de arrendamento que teria maiores condições para pagamento. No entanto, como nenhuma relação foi firmada entre consignante e o terceiro que comprou o carro (empresa de arrendamento mercantil).

8.       Responsabilidade pelos Vícios Redibitórios

E se o bem objeto do contrato estimatório padece de um vício oculto? O terceiro adquirente poderia propor a ação redibitória ou quanti minoris contra o consignatário, contra o consignante ou contra ambos. Segundo Cristiano Chaves, a responsabilidade é do consignante!

Tenho dúvidas aqui, pois se não há relação jurídica entre consignante e terceiro, um não tem qualquer pretensão contra o outro. E mais! Normalmente há entre o consignatário (agência) e o terceiro uma relação de consumo, e neste caso todos os integrantes da cadeia de fornecimento respondem objetivamente pelos vícios do produto ou serviço, nos termos do artigo 18 do CDC[7]. Fica a dúvida, porém, se o consignante pode ser considerado como integrante da cadeia de consumo para tal fim.









[1] O bem infungível é aquele que não pode ser substituído, pois apresenta características que interessam ao proprietário. Assim, o consignatário deverá restituir o mesmo bem que lhe foi entregue.

[2] É certo que existem semelhanças entre o arresto e o sequestro, pois ambas são medidas cautelares nominadas e implicam a constrição de bens a serem preservados para que sirvam aos resultados da futura ou atual ação principal, de conhecimento ou de execução. Entretanto, entre eles há marcantes distinções que eliminam oportunidades para dúvidas quanto ao cabimento de um e outro. Enquanto o arresto constitui medida de conservação de bens patrimoniais do devedor para assegurar o futuro pagamento em dinheiro, o sequestro representa providência de mera preservação da coisa cuja entrega "in natura" é almejada pelo requerente. Portanto, no arresto não interessa ao postulante o bem em si, mas sim sua representação monetária para a garantia do crédito a ser exigido em execução por quantia certa. No sequestro, o interesse do requerente recai sobre a própria coisa sujeita a desaparecimento ou deterioração, afinal, é ela que se pretende ver entregue ao vencedor da demanda principal, cognitiva ou executiva. Logo, são irretocáveis as lições de todos os escritores quando afirmam que o arresto incide sobre qualquer bem penhorável do devedor, desde que necessário para assegurar a solução da dívida, ao passo que o sequestro recai sobre bem específico, certo, determinado, fungível ou não. Por isso, o arresto aparece como uma medida de segurança do cumprimento da sentença que resulta a obrigação de pagar soma em dinheiro (art. 475-J) ou da ação de execução por quantia certa (art. 646). De outro lado, o sequestro se apresenta como uma cautela ao cumprimento da decisão que determina a entrega da coisa (vg. art. 461-A) ou da ação executiva de título extrajudicial promovida para esse mesmo fim (art. 621). MACIEL, Daniel Baggio in Processo Cautelar. São Paulo: Editora Boreal, 2012. Disponível em: http://istoedireito.blogspot.com.br/2008/05/diferena-entre-o-arresto-cautelar-e-o.html. Acesso em 31/12/14
[3] Art. 397. O inadimplemento da obrigação, positiva e líquida, no seu termo, constitui de pleno direito em mora o devedor.
[4] Art. 397 [...]
Parágrafo único. Não havendo termo, a mora se constitui mediante interpelação judicial ou extrajudicial.
[5] Art. 252. Nas obrigações alternativas, a escolha cabe ao devedor, se outra coisa não se estipulou.
Art. 253. Se uma das duas prestações não puder ser objeto de obrigação ou se tornada inexeqüível, subsistirá o débito quanto à outra.
Art. 256. Se todas as prestações se tornarem impossíveis sem culpa do devedor, extinguir-se-á a obrigação.
[6] Art. 535. O consignatário não se exonera da obrigação de pagar o preço, se a restituição da coisa, em sua integridade, se tornar impossível, ainda que por fato a ele não imputável.
[7][7] Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com a indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas.

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